A cantora Fabiana Cozza, escalada para interpretar Dona Ivone Lara no musical "Dona Ivone Lara - um sorriso negro", renunciou ao papel no teatro. A notícia foi publicada no último domingo na coluna Marina Caruso. A artista vinha sendo criticada por integrantes do movimento negro por ser "branca demais para o papel". Conhecedora do repertório de Dona Ivone e do colorismo (termo que correlaciona a quantidade de melanina da pele ao preconceito que se sofre), a cantora, escreveu uma carta de renúncia:
"Fabiana Cozza dos Santos, brasileira
Nascimento: 16 de janeiro de 1976
Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca
Pai: Oswaldo dos Santos, negro
Cor (na certidão de nascimento): parda
Aos irmãos:
O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo correta. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.
Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.
Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.
Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos.
Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas...
Ao lado de vocês, irmãos.
Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade.
Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz.
Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.
Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.
Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto.
Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.
Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.
Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.
Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.
Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá.
Fabiana Cozza".
Algumas personalidades negras saíram em defesa de Fabiana: “Às vezes, no afã de expormos as faces cruéis e inadmissíveis do racismo que estruturou o nosso país, nos esquecemos sobre quem estamos falando, e isso é muito ruim. A nossa sensibilidade, uns para com os outros, não deve ser deixada de lado em nome de um academicismo mecânico, tão criticado por nós, justamente, por tentar legitimar discriminações de todo tipo por séculos”, escreveu a sambista Leci Brandão. “Todo meu carinho e solidariedade à grandiosa Fabiana Cozza. Cantora negra de voz ímpar, doce e singular”, compartilhou a cantora Teresa Cristina.
A produção do musical prometeu soltar um comunicado sobre o assunto e os rumos do espetáculo até terça-feira. “Dona Ivone Lara — um sorriso negro” tinha estreia prevista para setembro, no Teatro Carlos Gomes, no Centro do Rio.
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Redação iBahia
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