Ele não traz grandes hits da carreira de Caetano Veloso, nem tem canções muito radiofônicas. Pode não ser tão conhecido do público geral, mas é frequentemente citado entre os maiores discos da música popular brasileira e teve seu 50º aniversário celebrado com fervor nos últimos meses. Estamos falando do álbum "Transa", de 1972.
Só para citar algumas honrarias, ele foi eleito o décimo melhor disco brasileiro de todos os tempos pela revista Rolling Stone, em 2007. Recentemente, o podcast Discoteca Básica, comandado pelo jornalista Ricardo Alexandre, abordou "Transa" em um dos episódios da quarta temporada.
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O álbum também aparece no top 10 da votação "500 Maiores Álbuns Brasileiros de Todos os Tempos", promovida pelo podcast.
O reconhecimento não se limita ao solo brasileiro: em 2016, a música "You Don't Know Me", faixa de abertura do álbum, foi eleita pela revista americana Pitchfork como uma das 100 melhores músicas dos anos 70. Antes disso, em 2008, o selo europeu Vinyl Lovers lançou uma prensagem de "Transa" em vinil.
"Transa" é um dos dois álbuns gravados por Caetano Veloso durante seu exílio em Londres, no início dos anos 70. Se no primeiro LP londrino, "Caetano Veloso" (1971), a melancolia e as canções em inglês davam o tom, o disco seguinte mistura os sons da Bahia com a música que estava sendo feita na Inglaterra e no mundo, em composições bilíngues.
A direção musical ficou por conta de Jards Macalé, e a produção é do britânico Ralph Mace. Após o lançamento, a recepção do disco foi mista: alguns críticos aplaudiram o experimentalismo, enquanto outros criticaram aquilo que foi definido como uma "tentativa de internacionalização". (link pra outra matéria)
Em depoimento publicado no canal do YouTube "falacaetano" em 2012, Caetano define "Transa" como um de seus melhores discos. "Embora seja um disco com canções escritas em inglês, que não é minha língua, mas eu usei tantas citações de músicas brasileiras e gravei 'Mora na Filosofia' (Monsueto e Arnaldo Passos)... E eu gosto muito dos arranjos e do estilo a que a gente chegou ali. É muito original, é diferente. Não tem nada a ver com o rock psicodélico dos Mutantes e do primeiro período do Tropicalismo, mas não é MPB no sentido chato da palavra. Também não é rock inglês da época, não se reduz a nada. É algo que existe em si mesmo e tem sua originalidade", avalia.
O lugar de destaque do álbum "Transa" é hoje uma das "verdades absolutas" entre os apaixonados por música brasileira, mas talvez você se questione: o que faz com que esse disco seja tão cultuado? O portal iBahia fez essa mesma pergunta a jornalistas, pesquisadores e fãs de Caetano.
Entre vários aspectos, eles destacaram principalmente as "colagens" musicais, feitas muito antes da existência dos samples — "You Don't Know Me", faixa de abertura do álbum, cita composições de Carlos Lyra, Edu Lobo e Luiz Gonzaga, por exemplo —, a espontaneidade das gravações e a sonoridade roqueira mesclada com a baianidade. Outra característica marcante de "Transa" é o conceito do "discobjeto", com uma capa que se transforma em um objeto tridimensional. Confira as respostas:
André Oliveira, DJ, pesquisador musical e criador do projeto "A Bahia Já Me Deu"
"Quando me perguntam sobre o "Transa", eu sempre penso na primeira escuta do álbum na íntegra, que me deixou bem mexido. Ouvi muitas vezes, porque além de ser hoje em dia um pesquisador de música, eu sou um músico, então sempre me imaginava tocando as faixas do disco, fazendo as linhas de baixo. Depois, pesquisando, descobri que Jards Macalé participa como diretor musical. Quando você conhece a obra de Jards, os álbuns que ele produziu, você já vê que tem algo diferente no Transa. Até então, Caetano não tinha feito nada nessa linha".
"Como ele tem toda essa bagagem, de Santo Amaro, de Salvador, enfim, dessa cultura tradicional baiana, ele consegue trazer outros elementos. E tem uma coisa que é bem bacana nesse álbum. Na época ninguém sampleava coisas, mas ele já tinha essa ideia de trazer frases, de trazer melodias, tanto de literatura, como de música mesmo. Então, são vários recortes ali dentro do disco, vários samples analógicos feitos pelo próprio Caetano e pela própria banda. É um disco atemporal, para mim".
James Martins, poeta, pesquisador musical e agitador cultural
"Tem uma combinação de muita coisa boa de Caetano e um aperfeiçoamento de muitas coisas que não eram tão boas. O som desse disco é muito bem feito. Tem a ver com o fato de ter sido gravado fora, a banda, a presença de Macalé. Mas não só o som, tem as canções".
"A combinação do sentimento de exilado, estrangeiro, com a manifestação da sua baianidade em linguagem elétrica, meio rock 'n roll, isso é o que faz com que o disco chegue até hoje muito jovem e agrade tanto aos jovens. Naquele disco, grande parte do que soa revolucionário e inovador é nada mais do que a ancestralidade baiana. Canto de capoeira, evocações de Gregório de Matos, esses elementos muito baianos dão a esse disco um aspecto de juventude. É um disco arrojado".
Lorena Calabria, jornalista e apresentadora
"'Transa' é um marco na história da música brasileira e o que chama mais atenção é que tudo que que ele tem de inovador é fruto de um conjunto de fatores que vão se aliando para dar nesse resultado de uma maneira muito espontânea, ou seja, nada foi tramado ou arquitetado pra causar este ou aquele efeito. Eu acho que um dos fatores que contribuiu pro som desse disco foi a vinda do Caetano ao Brasil, ainda durante o período do exílio".
"Ele foi a Salvador comemorar as bodas dos pais, por intermédio de Maria Bethânia ele conseguiu essa brecha. E quando ele volta pra Londres e grava o disco, ele chega com essa injeção de ânimo, de energia, de esperança. Esse é um contraste com o disco anterior que ele gravou também em Londres, e que refletia toda aquela tristeza dele naquele período".
"No "Transa", acredito que essa saudade aparece em tons mais vibrantes e é aí que entra outra característica que eu acho que só engrandece o álbum, quando ele insere trechos de várias músicas do nosso cancioneiro, do mais tradicional ao contemporâneo na época. É como se ele estivesse reforçando essa saudade imensa do Brasil através da nossa música. Outro ponto muito importante no "Transa" é que ele é um disco de banda".
"Dá pra sacar na audição do disco o tanto de improviso e criatividade que rolou no estúdio. Eles ensaiaram bastante antes e gravaram em apenas quatro dias. Fora isso tem a participação da Gal Costa nos vocais, Angela Ro Ro tocando gaita (na faixa "Nostalgia") antes da fama... Cinquenta anos depois de lançado o "Transa", eu acho que posso resumir da seguinte forma: quanto mais o tempo passa, mais moderno esse disco fica".
Luciano Matos, jornalista, pesquisador musical e DJ seletor
"Eu acho que foi um disco redescoberto ao longo dos anos. Caetano já era um cara muito conhecido, mas ele tinha ficado conhecido pelos hits. O "Transa" foi sendo redescoberto e isso deu uma aura "cult" ao disco. Tem uma coisa de uma sonoridade um pouco mais roqueira, que eu acho que ajudou a crítica, que em geral, pelo menos até um tempo atrás, tinha uma formação mais roqueira. Eu acho que isso ajudou e foi bem importante".
"Mas o álbum traz muito do que Caetano tem de melhor, em minha visão, pelo menos. Tem uma atmosfera que nem todos os álbuns dele têm, uma coisa meio melancólica. E ele trafega por várias sonoridades que marcam a trajetória dele, tem citações ao reggae (na faixa "Nine Out of Ten"). Também tem os arranjos, esse dedo de Macalé, uma guitarra bem interessante, bem abrasileirada, que pesa muito na qualidade desse disco".
"Tem outra coisa que quem só conhece o "Transa" pelas plataformas de streaming não teve acesso, uma ousadia gráfica que você fazia com a capa, me chamava atenção também. Independente de todo esse entorno, são canções muito inspiradas. Acho que ele traz ali, talvez por essa coisa do exílio, essa saudade do Brasil e essa vontade de se expressar, de falar de várias coisas importantes".
Marcelo Argolo, jornalista e pesquisador musical
"O "Transa" tem esse conceito de colocar várias coisas que têm formatos e origens diferentes para combinar e produzir algo que é muito único. Era um conceito que Caetano já trazia da Tropicália, mas que no Transa ele apresenta de outra forma. É um disco que não tem nada da estética tropicalista e que ele faz um trabalho de composição bilíngue que é muito incrível".
"Ele coloca a língua portuguesa e a língua inglesa para combinar, construindo uma narrativa e fazendo com que essas com que essas transições de uma língua para outra soem fluentes, combinem na métrica e caibam na mesma melodia, né? Eu acho que isso é um trabalho técnico de composição que dá ao "Transa" um lugar de destaque naquele momento na música brasileira".
Márcia Damasceno, relações-públicas e fã de Caetano Veloso
"Para mim "Transa" é de fato um álbum emblemático, sendo o primeiro disco de grupo gravado quase como um show ao vivo. É lindo demais. Com poesia, Bahia, mistura de ritmos, como bossa, reggae. Bastante percussão e muito rock. E por ser também essa mistura de português e inglês, que nos conecta a todo tempo às duas realidades vividas por ele".
"O disco também tem uma certa melancolia, muito pela saudade que Caetano sentia do Brasil, e sintetiza um Brasil visto à distância cantando Triste Bahia, que usa parte do soneto do poeta Gregório de Matos e utiliza do tema crítico do poema para falar da situação política do Brasil na época. O LP nasceu da saudade ao retornar à Inglaterra depois da breve visita ao Brasil que ele fez em 1972. Mais um disco que será para sempre aclamado por todos".
Mauro Ferreira, jornalista e crítico musical
"'Transa' é um disco cultuado porque costurou referências da música brasileira com informações musicais então novas que espocavam da Inglaterra, onde Caetano estava exilado. É um disco de sonoridade, de banda. A direção musical de Jards Macalé fez dele um disco inventivo. Em termos de repertório, Caetano apresentou discos com canções mais redondas, mas "Transa" é histórico pelo recorte do momento".
Pérola Mathias, jornalista e pesquisadora musical
"O "Transa" é um retrato de época muito bem feito. Ele pega toda aquela melancolia que Caetano sentia com o exílio forçado, com a saudade que ele sentia do Brasil, inclusive porque havia a incerteza de quando ele voltaria e se voltaria, ninguém sabia como iam se desenrolar os processos da ditadura militar. Ele tem uma banda muito potente, com Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Souza, e é uma espécie de gravação ao vivo, então tem essa potência ali da interação do grupo. E tem a construção das músicas, que juntam várias características, a exemplo das colagens. Ele tem as composições dele, mas usa colagens de outras músicas".
"Ele se remete à própria composição, "Saudosismo", ele musicou o poema do Gregório de Matos, ele utilizou trechos da música popular... Ele vai fazendo essa colagem ao longo do disco junto com uma seção instrumental que muitas vezes puxa pro lado jazzístico, outras vezes prioriza a percussão".
"Todas essas colagens vão criando um sentido de crítica à realidade de uma Bahia que se industrializava, que passava por uma pauperização ao mesmo tempo em que a ditadura falava de desenvolvimentismo. Tem muito a ver com algumas obras sociológicas, também, que tratam do período, como a pesquisa do sociólogo Chico de Oliveira sobre a industrialização da Bahia. São músicas que fazem sentido até hoje, então não perdem a validade, mas também nos dão um retrato daquele momento".
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Juliana Rodrigues
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