Lá pelo final do Coringa de Joaquin Phoenix, em cartaz nas salas de cinema de todo o país, há uma homenagem à interpretação que o falecido Heath Ledger emprestou a um dos maiores vilões dos quadrinhos em Batman, o Cavaleiro das Trevas. Nos dois filmes, o de agora e aquele de 2008, o maior inimigo do homem-morcego é conduzido em um carro de polícia com o rosto pintado de palhaço e os cabelos esverdeados, encarando e sorrindo sadicamente para uma cidade mergulhada no caos e na irracionalidade.
Mas as comparações entre os dois filmes param por aí, assim como o spoiler inofensivo. O Coringa de Joaquin Phoenix vive essa cena do seu jeito – a homenagem fica evidente por conta do enquadramento e da caracterização do ator. Certamente na principal atuação da carreira, Joaquin Phoenix cria do zero um novo Coringa, sem plágios ou reminiscências, nem mesmo incorporando alguma pitada do brilhantismo de Heath Ledger, vencedor póstumo de vários prêmios, inclusive do Oscar de ator coadjuvante. A superação é total.
Talvez por isso, quem sabe, Joaquin Phoenix receba também o Oscar, só que de melhor ator, como se cogita em Hollywood. Além de ser o ponto forte de Coringa, a interpretação dele não concorre com nenhuma nova versão do Bruce Wayne, figura que, dessa vez, não passa de um longínquo coadjuvante, embora importante em um roteiro envolvente e surpreendente. Até porque este não é um mais filme que impõe o confronto de dois arqui-inimigos dos quadrinhos da DC. Trata-se, para resumir, da cinebiografia de um personagem depressivo fictício que almeja ser comediante, mas que frustra-se criminosamente ao longo da jornada.
Assim como James Mangold fez em Logan, Todd Phillips, diretor e também um dos roteiristas de Coringa, optou por abordar a história de uma figura famosa dos quadrinhos de forma visceral e humana, mais próximo da realidade pessimista. Dessa forma, a violência se torna imprescindível em função do efeito que se deseja obter junto ao público e da própria índole dos personagens. Não se trata de violência gratuita, pois ela é justificada pelo roteiro (a censura de Coringa é 16 anos, vale frisar).
Loucura e crítica política - O filme é sobre a trajetória de um palhaço depressivo, esquelético, indesejado, alvo de todo tipo de violência, que sofre de uma doença psiquiátrica que o faz rir compulsivamente quando está nervoso ou é hostilizado. Chamado de Arthur Fleck, ele cuida da mãe, também doente, em um apartamento situado numa área pobre e periférica de Gothan. O sonho desse palhaço solitário sempre foi ser comediante, fazer stand up, mas ele, que se apresenta em hospital para crianças com problemas raros de saúde para sobreviver, se torna cada vez mais paranoico até decidir reagir e terminar como o vilão capaz de provocar uma ebulição social da cidade que ainda não conta com um herói milionário para defendê-la.
Joaquin Phoenix mergulhou na alma e no corpo de Arthur Fleck para dar sentido a esse novo Coringa. Perdeu quilos, vestiu-se de doido varrido e se superou com ator. Mas se sustentou em um roteiro original primoroso, que esmiuçou o universo da loucura e de algumas de suas causas. Todd Phillips, de Se Beber, não Case, se aprimorou como diretor e roteirista em um trabalho relevante e que, sem dúvida, vai entrar para a história do cinema não por repetir fórmulas para agradar fãs de quadrinhos, mas por ousar criar algo original e tão vigoroso como um musical dramático.
Além de tudo, Coringa, cujo enredo se passa em meio a uma pré-campanha do pai de Bruce Wayne à prefeitura, também faz crítica política na medida em que exibe um governo que corta investimentos nas áreas sociais e de saúde pública, pois não liga a mínima para pessoas como Arthur Fleck, e a uma sociedade que se esconde atrás de máscaras para eleger um sádico como líder em uma guerra contra o sistema opressor em nome de mudanças rápidas sustentadas na ignorância. Gothan pode não existir, mas o alvo foi atingido em cheio: o eleitor de Donald Trump.
Fotografia e trilha - A fotografia, assinada por Lawrence Sher, acompanha com maestria a trajetória do vilão, enaltecendo ainda mais o talento de Joaquin Phoenix e assegurando, com a edição refinada, variações de ritmo essenciais ao filme até o gran finale. Não há um instante em que o expectador fique disperso ou indiferente a Coringa.
Com cenários e locações externas selecionadas criteriosamente, a câmera desnuda não apenas o personagem, mas também a periferia da cidade fictícia, utilizando os mais diversificados planos, em cores realistas. Marcando os passos de um vilão tão complexo, a trilha sonora é outra virtude de Coringa. As composições originais escritas pela violoncelista islandesa Hildur Guðnadóttir contribuem para revelar as variadas características humanas e as transformações de Arthur Fleck, bem como, em variados momentos, lembram à audiência que se trata de uma película inspirada nos quadrinhos.
Também fazem parte da trilha sonora músicas como “Smile”, Charlie Chaplin, que aparece no filme em uma cena passada dentro de um cinema, e “That´s Life”, de Frank Sinatra, e Rock And Roll, de Gary Glitter. Uma coletânea para ninguém botar defeito em um filme que provoca reações da plateia o tempo inteiro.
*Alexandre Reis é jornalista
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