Havia passado dois meses na Barreira, a roça do meu saudoso avô Turíbio. Vivi dias de entrega total àquele pedaço de sertão, zona rural do município de Uauá. Ali aprendi a tomar banho de rio, montar em jegue, colher mangas; saboreei o doce de buriti, o cuscuz com recheio de carne de carneiro servido de manhãzinha, quando da saída dos vaqueiros para a lida com o gado. Experimentei, ainda, o sabor das lendas e dos 'causos' fantásticos que os mais velhos contavam ao cair da noite. Tantas vezes tremi de medo ouvindo as histórias da enigmática dona Joana Facão, uma cabocla “sobrevivente do bando de Lampião”.
Foram dias tão intensos que, ao saber da aproximação do novo ano letivo e da necessidade de arrumar os cacarecos para rumar de volta à Serrinha, a cidade onde morava, fui tomado por uma tristeza sem tamanho. Fiz bico. Chorei. Preocupada com o meu estado de ânimo, Sandra, a prima mais velha, decidiu fazer-me uma surpresa. No dia da minha partida, momentos antes do embarque no ônibus da antiga Viação São Luís, fui levado por ela ao Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, a maior escola pública da região à época. Deu-se, naquele lugar, o meu primeiro contato com uma feira literária. Uma feirinha, em verdade. Cada sala de aula trazia cartolina na porta com homenagens a figuras conhecidas: o criador da escola, Coronel Jerônimo, o líder revolucionário Antônio Conselheiro, a poeta Fátima Ribeiro, autora de versos sobre a Guerra de Canudos: “Canudos foi um paraíso / Que só quatro anos durou / Vivendo em fraternidade / O povo se organizou / E esta busca por igualdade / Aos grandes incomodou”.
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Recordo-me do fascínio que a feira produziu em mim. Eram tantas, tão divertidas e curiosas performances que eu mal conseguia piscar. Estudantes da sede e do campo apresentavam jograis, poemas, peças de teatro sobre temas comuns ao universo sertanejo local: o bode e o umbu, “reis da caatinga”, os vaqueiros e seus aboios, as premiadas festas agropecuárias, o reisado do Menino Jesus, o São João, a banda de pífanos do Bendengó. Vestida de Castro Alves, exuberante num palco improvisado em cima do tanque de água da escola, uma aluna com óculos “fundo de garrafa” lia textos de autores regionais em voz alta. Animadíssima, a plateia formada por alunos, seus professores e familiares explodia em gritinhos, aplausos. Um espetáculo para quem, aos 11 anos, descobria o extraordinário poder das palavras.
Voltei para casa pensando na beleza, na potência daquele evento. Desejei criar uma feira literária em minha cidade. Isso se deu, de fato, mas só algumas décadas depois. Refiro-me à Feira Literária Internacional de Serrinha, realizada em julho passado, da qual fui curador. A FELIS, como ficou conhecida, soma-se a outras dezenas de festas, feiras, festivais literários que têm pipocado por toda a Bahia. São eventos que, em geral, nasceram tímidos, como a feirinha de Uauá, mas que, com o passar do tempo, tornaram-se instrumentos de promoção do livro, da leitura, visibilizando a produção de autoras e autores das diferentes regiões do estado. Além das mais antigas e já consagradas FLICA, em Cachoeira, e FLIPELÔ, na capital, temos, para ficarmos em alguns poucos exemplos, as feiras literárias de Capim Grosso, Praia do Forte, Amélia Rodrigues, Boipeba, Rio de Contas, Antônio Cardoso.
O Plano Estadual do Livro e Leitura, elaborado em 2013, identificou seis eventos literários na Bahia naquele ano; hoje, uma década depois, o mesmo plano indica a existência de quarenta e três eventos literários apoiados pelo governo do Estado, em vinte e sete territórios de identidade. Se considerarmos os demais eventos apoiados por prefeituras, universidades, organizações da sociedade civil, chegaremos a mais de uma centena de feiras. “Isso mostra o quanto é enriquecedor esse ambiente de fomento à leitura, ao livro e à literatura”, diz o educador e Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon, Vladmir Costa Pinheiro.
Compreendendo esses eventos como ambientes para formação de leitores, visibilização de autores e circulação de livros, uma importante articulação internacional vem sendo construída. A ideia é firmar intercâmbios literários entre escritores baianos e estrangeiros, a começar por aqueles que fazem parte da CPLP, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Foi o que levou a Moçambique, em julho, o escritor Jocivaldo dos Anjos. Curador da já mencionada FLICA, coube a ele discutir a internacionalização das festas literárias da Bahia durante a Feira do Livro de Maputo.
Entre as sugestões trazidas de lá está a criação de uma Feira Literária Internacional, um grande evento transcontinental com foco na contribuição do povo africano para a literatura brasileira e, em especial, para a baiana. “Nossa expectativa é fortalecer a relação entre nós, povos pretos no mundo, de modo a que a gente consiga ampliar o que produzimos, e fazer disso um momento perene de relações culturais e de fortalecimento político. Que sejamos construtores de amor”, diz o autor.
Confira abaixo a entrevista com o escritor Jocivaldo dos Anjos
Ricardo Ishmael
Ricardo Ishmael
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