Como era acirrada a competição entre as quadrilhas juninas das ruas Macário Ferreira e das Abóboras! Bastava maio chegar e os grupos rivais iniciavam reuniões sobre temas, figurinos, participantes. Quando junho rompia no calendário, para a felicidade geral, recorriam esses mesmos grupos à artilharia pesada: livros de ouro a fim de angariar fundos, visitas a políticos e comerciantes serrinhenses em busca de contribuições. Nenhum nome de destaque escapava à passagem da sacolinha: da Farmácia de Ramalho ao Chama Supermercado. Saíam os quadrilheiros embaixo de sol forte ou à sombra do fim de tarde, em duplas ou em bandos, numa romaria cheia de expectativa.
Cada moeda arrancada do embornal dos poderosos era destinada a financiar o espetáculo da noite do São João, o que incluía decoração das ruas com bandeirolas coloridas, contratação das caixas de som para animar a festa, comes e bebes para o trio forrozeiro. E, então, na hora do espetáculo, as ruas se enchiam de luzes, sons e aromas: o lume das fogueiras, o estalo dos fogos, o cheiro da fumaça misturado ao do milho assado.
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Chegavam os moradores em levas, famílias inteiras, e as crianças com trajes típicos, rostos e dentes pintados, botas e coletes, os indispensáveis chapéus de palha ou as singelas tranças caipiras. Idosos acomodavam-se à porta das casas em bancos e cadeiras, em camarotes com vista privilegiada.
Se fazia frio - e normalmente fazia - enrolavam-se em chales e colchas de chenille sem qualquer cerimônia. Dava-se o aviso: a quadrilha da Macário Ferreira entraria em cena. Foguetes rasgando o céu anunciavam o início da apresentação. E lá surgia o marcador em ar de grande responsabilidade ordenando os passos: cumprimentos, caminho da roça, damas ao centro, olha o túnel…
Além dos clássicos “olha a chuva” e “olha a cobra”. Uma catarse! A multidão aplaudia, gritava; os dançarinos se enchiam de orgulho ante a ovação. Uma apoteose! Um portento! Sucesso geral. No final da apresentação, mais saudação do público. Mais fogos, mais vivas. Bravos! Bravos!
Era a vez da quadrilha rival
A festa não terminava assim, porém. Era a vez da quadrilha rival. Corriam todos até a Rua das Abóboras, não muito longe dali, em tempo de alcançar o início do próximo espetáculo. O ritual se repetia, porém, com nítidas diferenças: tema, figurino, evoluções, nada poderia ser nem sequer parecido ao que fora apresentado pela concorrente.
Por detrás de cabana feita com palhas de pindoba surgiam os muitos casais, inicialmente sérios, compenetrados, conscientes da tarefa que carregavam, para logo em seguida explodirem em risos e alegria. Novamente fogos, gritos, o som do fole da sanfona, o toque do triângulo e o bumbar da zabumba reunidos numa sinfonia adoravelmente enlouquecedora. Não havia troféus ou prêmio em dinheiro. Sequer havia uma vencedora.
A competição dava-se noutro nível: o da tradição. Interessava, tão somente, preservar a festa, ainda que ninguém pensasse naquilo como uma obrigação a ser cumprida. Vivia-se a festa, apenas. Naquelas duas ruas do mesmo bairro, mais uma vez, o São João se reinventava, renascia, ressurgia para, no ano seguinte, renascer outra vez, pois que vive no coração da gente e isso é o que garante a sua sobrevivência.
Ricardo Ishmael
Ricardo Ishmael
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