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Salvador 475 anos: a história que a história não conta

Neste conto bem humorado, Ricardo Ishmael apresenta uma versão extraoficial para a fundação da cidade do Salvador

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Ricardo Ishmael

29/03/2024 às 7:00 - há XX semanas
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Thomé de Souza tremeu nas bases ao receber a missão de fundar, no Além-Mar, uma cidade-fortaleza. Salvador seria a capital da colônia, a sede do Governo Geral do Brasil. Parecia-lhe tarefa por demais trabalhosa, uma aventura certamente carregada de sacrifícios e dissabores. Os relatos que chegavam dos trópicos não eram nada bons.


				
					Salvador 475 anos: a história que a história não conta
Thomé de Souza foi o fundador de Salvador. Foto: Reprodução

Afundara Diogo Álvares Correia, a quem chamaram ridiculamente de Caramuru, apelido esquisito e passível de terríveis gírias; devoraram Francisco Pereira Coutinho, o azarado Donatário da Capitania da Bahia, homem bom e religioso, mas que acabou virando cozido no tacho fumegante dos bugios.

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Sem falar, é claro, das tormentas desde a viagem até o desembarque, dos surtos de piolho e sarna, dos ataques de caganeira, das mordidas de cobra e dos lagartos gigantes que, à calada da noite, enfiavam suas horrendas línguas em todos os brancos orifícios dos portugueses.

Não havia, porém, o que fazer. Missão dada por vossa Majestade, o Rei de Portugal, era missão a ser cumprida. Tratou-se, então, de montar um Regimento. Thomé de Souza buscou entre os portugueses de destaque, na mais alta fidalguia do Reino, aqueles que se dispusessem a embarcar na nobre empreitada. Pensou em contar com o apoio dos melhores engenheiros, arquitetos, pedreiros, artífices e muitos outros profissionais de gabarito, gente das tradicionais famílias de Lisboa e Porto.

Ninguém se dispôs voluntariamente. Não havia quem desejasse abandonar as regalias de uma vida abastada à beira do Tejo e do D’Ouro para lançar-se no meio da selva do Novo Mundo. O jeito, ora pois, foi recorrer ao valoroso sentimento de amor à pátria: ofereceram-lhes terras, engenhos de cana de açúcar e muitas moedas de ouro. Dois meses depois, movidos pelo espírito altruísta, zarparam dezenas de homens em suas grandes naus rumo à fundação da cidade do São Salvador da Bahia de Todos-os-Santos.


				
					Salvador 475 anos: a história que a história não conta
Palácio Rio Branco fica na praça municipal de Salvador. Foto: Reprodução

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Assoberbado em seus afazeres, Thomé de Souza esqueceu-se de contratar o Escrivão-Oficial, aquele a quem competiria tomar notas acerca da viagem e, mais importante ainda, comunicar à Vossa Majestade tudo o quanto ocorresse a bordo e, quando do desembarque, em solo Ultramarino. O Governador-Geral pensava em como descascar aquele abacaxi quando, de repente, entraram em sua cabine duas faxineiras designadas para o asseio das latrinas.

Uma preta e a outra indígena, as jovens escravizadas foram generosamente cedidas por seus senhores portugueses à caravana. Educadas no Alentejo, sabiam ler, escrever, falavam francês, inglês e espanhol e tinham, ainda, conhecimento de cartas náuticas e astronomia. Em segredo, também punham cartas, jogavam búzios, faziam pajelança, pois descendiam de famílias com poderes ancestrais. Superavam, portanto, os limitados dotes intelectuais do próprio Thomé de Souza.

O comandante confiou a elas, ainda que desconfiando, a importante tarefa de redigir as cartas reais. Assim elas fizeram. Na versão oficial, as novas escrivãs narraram o quão incrível havia sido a viagem, e o extraordinário desembarque do Governador-Geral e de seus bravos homens na solar São Salvador da Bahia a 29 de Março de 1549 do Ano do Nosso Senhor; detalharam a construção fortificada, as sete portas que circundavam uma cidade dividida entre Alta e Baixa, a elevação da Ermida de Nossa Senhora da Conceição da Praia, do Palácio do Governo-Geral, da Casa de Câmara e Cadeia, sem falar do Palácio Arquiepiscopal, para a Honra e a Glória do Senhor. Amém.


				
					Salvador 475 anos: a história que a história não conta
Na versão oficial, as novas escrivãs narraram o quão incrível havia sido a viagem até Salvador. Foto: Reprodução

Às escondidas, em geral à noite, as escrivãs passaram anotar a versão extraoficial daquela missão, a história que jamais seria contada nas cartas reais. Relataram os abusos desde a partida de Lisboa, os estupros e demais aviltamentos sofridos pelas mulheres a bordo; em solo colonial, quando do desembarque, detalharam os ataques aos povos originários, a destruição das suas moradias e a apropriação das suas terras; e novamente os relatos de estupros, dos castigos físicos, dos assassinatos.

Denunciaram a exploração das mulheres e homens africanos trazidos à força nos navios tumbeiros e negociados como se mercadoria fossem, a existência dos pavorosos mercados de gente, a dor do flagelo sem fim. Não esqueceram de escrever sobre a exploração das riquezas da terra, a derrubada das matas nativas, a extração de tudo aquilo que pudesse ser enviado a Portugal ou transformado em moeda na própria colônia.

Também havia beleza na versão extraoficial. As escrivãs tomaram nota do quão magníficos eram as florestas, as águas, os pássaros coloridos e toda a sorte de demais bichos; escreveram a respeito da luz excepcional que incidia sobre a cidade quase o ano inteiro, e sobre a pureza do ar e o regime das chuvas, tudo aquilo explodindo em mais vida e mais beleza.


				
					Salvador 475 anos: a história que a história não conta
Neste conto bem humorado, Ricardo Ishmael apresenta uma versão extraoficial para a fundação da cidade do Salvador. Foto: Reprodução

Por fim, destacaram as gentes tão ricas em suas diferenças, o povo preto que, para seguir resistindo, cantava e dançava saudando orixás, inkices, voduns e caboclos; e os povos indígenas, os tupis e tupinambás, os verdadeiros donos da terra que, em gritos sonoros vindos das matas próximas, honravam Anhangá, Tupã, Guaraci. Xetruá!

Não se sabe o fim das jovens escrivãs. Dizem que, obrigadas a comunicar ao mundo apenas versão oficial das suas narrativas, desapareceram no ar, como se encantadas fossem, e hoje, 475 anos depois, retornam à cidade do Salvador sempre que invocadas por atabaques e pajelanças, em sua eterna missão de contar e recontar o que a história preferiu apagar.

Imagem ilustrativa da coluna CLUBE DO LIVRO
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