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Xetruá! Um salve aos caboclos

Misturando ficção e realidade, Ricardo Ishmael compartilha sua primeira experiência na “Volta da Cabocla”

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Ricardo Ishmael

05/07/2024 às 6:50 - há XX semanas
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Um velho preto me disse, certa feita, que a Cabocla e o Caboclo do 2 de Julho estão vivos. “Repare bem, seu moço. Preste atenção. Os olhos deles se mexem!”. Olhei e nada vi. Nenhum movimento. Pensei que o velho misterioso, que aparecera repentinamente ao meu lado, estava zoando de mim. Ele insistia: “Tu não vê, seu moço?! Eles tão ligados em tudo o que se passa. Olha direito. Tão felizes demais!”.


				
					Xetruá! Um salve aos caboclos
Xetruá! Um salve aos caboclos. ​Foto: Arquivo Pessoal

Segui o cortejo que partiu do Campo Grande em direção à Lapinha, na famosa “Volta da Cabocla”, intrigado com as palavras do homenzinho miúdo, 1,60 centímetros, cabelos ralos e totalmente brancos. Era o ano de 2005, a primeira vez que eu participava do tradicional cortejo. Permaneci atento a cada detalhe da festa, e em especial aos carros que conduziam as imagens.

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Transbordavam de flores, folhagens diversas, balaios variados, frutas as mais coloridas, e as abóboras, jerimuns, charutos baratos, moedas e bilhetes com pedidos de bênçãos, agradecimentos, desabafos. Sempre que corria os olhos para o lado, fascinado com tanta beleza, lá estava o velho me espiando, um quase sorriso no canto dos lábios, e o dedo apontando o rosto dos caboclos como se me dissesse para continuar observando os olhos dos donos da festa.

Xetruá! Um salve aos caboclos Foto: Arquivo pessoal

A multidão seguia correndo, embalada, empurrando os carros desde a Avenida Sete de Setembro, aos gritos e aos berros, uma gente alegre, radiante, bebendo cerveja e cantando ao som da Orquestra do Maestro Reginaldo de Xangô: “Tumba ê, Caboclo, Tumba lá e cá… Tumba ê, Guerreiro…”. E da outra ponta do cortejo, com a mesma empolgação, vinha o restante da cantoria: “Tumba ê, Meu Pai… Tumba lá e cá, não me deixe só…”.

Eu ria com as deliciosas imagens das oferendas que, por causa dos solavancos do caminho, caíam no chão, sendo disputadas como relíquias pelo povo. O velho preto sumia para, logo em seguida, reaparecer, o dedo novamente me indicando os olhos dos caboclos. Fomos assim, naquele “aparece e desaparece”, até o Largo da Lapinha, o ponto derradeiro do trajeto.

Xetruá! Um salve aos caboclos

Agora a multidão se aglomerava ao lado da Igreja dos Santos Reis e em frente ao Pavilhão Dois de Julho, a morada daqueles caboclos seculares. Chegara o momento da despedida, de reconduzir os carros ao galpão verde e amarelo e lá deixá-los, quietos e em silêncio, até o ano seguinte.

O velho, então, chegou junto a mim mais uma vez. Tocou o meu braço. Fez com que eu me abaixasse para um cochicho ao pé do meu ouvido. “Agora é que é coisa, seu moço. Eles não vão querer entrar”. Os homens do Batalhão Quebra Ferro, os únicos autorizados a entrar no Pavilhão naquele dia, escancararam as imensas portas de modo a permitir o recolhimento dos carros. Foi aí, e somente aí, que eu compreendi as palavras do preto velho.


				
					Xetruá! Um salve aos caboclos
Xetruá! Um salve aos caboclos. ​Foto: Arquivo Pessoal

Durante as manobras finais, postos os carros para entrar de ré, sem dar as costas ao público, como manda a tradição, os carros travaram. As rodas, cuja madeira remonta à época das guerras da Independência, não saíam do lugar. Empacaram. Os homens faziam força, puxavam daqui e dali, suavam como não suaram o trajeto inteiro. E nada. A Cabocla e o Caboclo, os donos da festa (e da terra!) estavam felizes demais para dizer adeus. Também eles transbordavam de alegria, tal qual o povo, motivo pelo qual, conforme me disse o preto velho, não queriam que a festa acabasse.

Pela vontade deles, ficariam ali fora mais um bocadinho, pois que todos aqueles gritos, palmas, vivas e assovios eram para eles e mais ninguém. Ergueu-se uma voz da multidão. Enquanto arremessava milho branco e alfazema na direção das imagens, uma iyalorixá puxou o cântico de despedida: “Eu já vou me embora / Para a minha aldeia / Eu já vou me embora, camarada / Para a juremeira.” Pipocavam saudações. “Xetruá!”, berravam uns. “Xetro Marrumbaxêtro”, outros completavam.

Assim, como num passe de mágica, sem opor mais nenhuma resistência, as rodas destravaram, os ferros amoleceram, os carros voltaram a se mexer. Os caboclos haviam decidido partir. Olhei uma última vez na direção dos seus olhos. Sim, eles brilhavam de modo diferente! Sim, eles estavam vivos! O preto velho tinha razão! Procurei o meu amigo misterioso. Desaparecera. Nunca mais o vi.

Xetruá! Um salve aos caboclos Foto: Arquivo pessoal
Imagem ilustrativa da coluna CLUBE DO LIVRO
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