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Conheça história da atriz trans Jenny Müller no Dia do Artista de Teatro

Artista conta sobre o seu processo de transição de gênero, sobre a sua entrada no mundo das artes e sobre as suas descobertas nas artes cênicas

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Arlon Souza

19/08/2023 às 7:00 - há XX semanas
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					Conheça história da atriz trans Jenny Müller no Dia do Artista de Teatro
Foto: Taylla de Paula

Jenny Müller é atriz, performer, modelo, roteirista e escritora. Soteropolitana, a cria de Cajazeiras VI se diz apaixonada pela pluralidade humana e em seus trabalhos, explora a criatividade através do corpo, imagem e som.

Multifacetada e muito consciente do papel artístico e político, a artista milita pela quebra de preconceitos e estereótipos relacionados à pessoas trans. Sobre estes e diversos outros assuntos, Jenny conversa com a gente na coluna De Resenha, em homenagem ao Dia do Artista de Teatro, comemorado no dia 19 de agosto.

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ARLON SOUZA - Você hoje é uma mulher trans. Foi um processo que começou com que idade? E com quantos anos você se sentiu plena de maturidade nessa identidade feminina?

JENNY MÜLLER - Eu sempre fui uma mulher trans. Uma mulher. Mas, esse processo de se identificar, de ter uma palavra que define quem é você, a sua trajetória e as interseccionalidades que perpassam pelo seu corpo, pela sua vida, pelo seu processo de identidade... Eu descobri, na verdade, aos 14... aos 16, eu comecei a tentar entender... mas só tive de fato a coragem de enfrentar as barreiras que a gente tem na sociedade, pra poder ser quem eu sou, aos 20 anos de idade. Então, a maturidade vem um pouco cedo, né... porque você se percebe diferente... porque eu tenho 28 anos, e quando eu tinha 14, eu não tinha muita referência. As únicas referências que eu tinha eram de violência, as questões pejorativas que envolvem essa identidade... todas essas violências sociais. Durante muito tempo eu tava nesse não-lugar, não sabia o que eu era. Não sabia como me definir, como me encaixar, como explicar o que eu sentia.

ARLON SOUZA - Foi muito doloroso a aceitação familiar e social? Muitos preconceitos? Como você lidou e superou tudo isso?

JENNY MÜLLER - Na questão familiar e social, eu tenho que dizer que não foi fácil. Nunca é, nem pra gente nem para quem está próximo, porque querendo ou não quando você se assume travesti, mulher trans, uma pessoa trans, no país que mais mata pessoas trans no mundo... porque o Brasil é há mais de 15 anos e continua sendo o país que mais violenta e mata pessoas trans e travestis no mundo, é sempre um baque, é sempre um lugar de questionar segurança, de se assegurar os direitos. então nunca é fácil mas eu tive uma rede de apoio muito muito grande de amigos, familiares, pessoas próximas e colegas de trabalho, pessoas da faculdade porque querendo ou não eu transicionei enquanto estava dentro da Universidade Federal da Bahia, num processo em que a universidade também estava transicionando em questão de entender esses corpos dentro da universidade. Então, tive muito apoio mas também passei por muitas situações, né... porque querendo ou não quando você é a primeira, e a primeira em muitos locais... a primeira na família, a primeira da roda de amigos, a primeira estagiária trans da Funceb... sempre você vai enfrentar desafios...


				
					Conheça história da atriz trans Jenny Müller no Dia do Artista de Teatro
Fotos: Taylla de Paula

ARLON SOUZA - Nessa transição, o que é suplantando e o que floresce nesse caminho de autoafirmação e autoconhecimento? Muitas descobertas?

JENNY MÜLLER - Existe uma metáfora visual que sempre uso. É que nessa pirâmide social existe as mulheres pretas, as mulheres pretas gordas, as mulheres pretas deficientes, as periféricas... e abaixo dessa base estão pessoas trans, né... Mas, quando a gente olha pra cima, a gente consegue enxergar toda engrenagem social. Eu acho que minha trajetória (está) tanto dentro da militância quanto dentro das artes, mas na vida ser uma pessoa trans, travesti, é ter um olhar mais nítido de como funciona esse sistema. É uma olhar mais apurado das hipocrisias sociais, porque toda violência de gênero envolve muita hipocrisia. Se odeia o feminino na sociedade, se exalta o masculino e, a partir daí, se usa todo esse mecanismo como forma de poder.

ARLON SOUZA - Você se importa de falar sobre seu nome de batismo? O que ficou para trás com ele?

JENNY MÜLLER - Sobre o nome de bastimo, eu acho que ele não importa, porque é só detalhe. É um nome morto. E, assim como a gente gosta de dizer, já tá morto e enterrado. Não me define, nunca me definiu... E o que ficou pra trás como esse outro nome foram as expectativas que as pessoas tinham de mim. E eu aprendi que eu não que me prender a isso, ser o que as pessoas esperam... Eu tenho que ser aquilo que me faz feliz.

ARLON SOUZA - Como é que você se descobre como artista? Desde de quando você percebe esse perfil voltado pro universo cultural?

JENNY MÜLLER - Eu sempre digo que a arte me salvou. Eu comecei a desenhar pequenininha, desenhando coisas do universo que eu sempre admirei, sempre fiz parte, mas que não pude vivenciar naquele momento, que eram os desejos que hoje eu olhando pra trás consigo entender, né... Depois, vem a escrita, que é esse lugar de eu expor meus sentimentos. E eu agradeço às pessoas que sempre me incentivaram a ser artista. E eu me descobri artista ainda criança.

Minha família é muito dramática. Eu também sempre fui muito dramática. As pessoas sempre me disseram que eu era performática, porque eu sempre tentei me expressar do jeito que eu podia, apesar das violências que eu sofri, apesar do não-lugar, das não-permissões, de não poder ser quem eu sou totalmente, eu sempre marquei meu território sendo dramática.


				
					Conheça história da atriz trans Jenny Müller no Dia do Artista de Teatro
Fotos: Taylla de Paula

Então, acho que meu talento vem desse lugar de luta. Eu comecei a ter contato com a performance quando eu tava fazendo faculdade de designer gráfico, participei de uma disciplina e a partir daí eu comecei a me interessar. Foi na mesma época que comecei a ter contato com o teatro, que eu comecei a fazer oficinas e aí eu participei de um grupo, o “Debaixo do Mesmo Teto”, que foi um lugar que me levou a estagiar no teatro, mesmo não sendo aluna da Escola de Teatro. Tanto que eu largo design gráfico já na reta final e me encontro nessas artes. Por exemplo, agora eu participei da leitura dramática do texto “Riso Sacana de Canto de Boca”, de Gildon Oliveira, com Mariana Freire e Mariana foi uma das minhas primeiras professoras de teatro... Então, foi uma honra, um presente da minha vida.

ARLON SOUZA - Como é que nasce Jenny Müller? Este é apenas o seu nome artístico ou também parte de seu nome social?

JENNY MÜLLER - Bem, o nome Jenny Müller nasce durante o meu processo na adolescência... Eu sempre quis que minha mãe participasse na escolha do meu nome, mas o processo não deu de fato pra envolver ela... Daí, eu peguei um nome que eu tinha antes, que eram dois nomes, e criei um anagrama, criei Jenny... E aí enquanto artista em pensei: eu preciso de um sobrenome, eu preciso de algo que marque... e aí eu sou apaixonada também pelos quadrinhos, eu queria ser quadrinista, eu queria trabalhar com ilustração, queria ser animadora... e eu era apaixonada por Alan Moore, amava Neil Gaiman e Frank Miller... E eu queria fazer uma homenagem a um deles. E daí eu achei que Jenny Miller combinava, mas coloquei como em alemão, com “u”, Müller... Já que existia uma atriz pornô com o nome de Jenny Miller, e eu queria evitar essa associação que sempre fazem com as mulheres trans como objetos sexuais.

ARLON SOUZA - Até o momento quais as suas experiencias de palco e performance? Você já fez cinema também, né? Tem tido boas oportunidades?

JENNY MÜLLER - Eu fiz alguns solos de performance, como o de “Emoldurada”, que é o solo pelo qual eu fiquei mais conhecida na cena da performance, e que é um processo de destrinchamento da violência com corpos travestis e trans na sociedade brasileira e uma homenagem a Gisberta, mulher trans assassinada em Portugal e que virou símbolo através da sua história contada na música cantada por Maria Bethânia, “Balada de Gisberta”.

Fui preparadora cênica no espetáculo de Queila Queiroz “E contar tristes histórias da morte das bonecas”. Protagonizei em 2018 o curta-metragem dirigido por Juca Badaró e Renata Semayangue, “O crime de Aristóteles”, onde divido tela com Bertrand Duarte. Em seguida em 2020 protagonizei, junto com Arlete Dias, Wall Diaz e Tia Má, o longa “Até o fim”, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicáci, que seriam meus diretores novamente no filme “Na rédea curta”, onde faço uma participação especial. Sem contar a leitura dramática agora no Vila Velha, do texto de Gildon Oliveira e dirigido por Mirian Fonseca, “Riso sacana de canto de boca”. Que foi uma experiência linda!


				
					Conheça história da atriz trans Jenny Müller no Dia do Artista de Teatro
Foto: Arquivo Pessoal / Geike

ARLON SOUZA - Já dá pra falar num papel ou de uma experiência marcante e inesquecível?

JENNY MÜLLER - Eu acho que todos os papéis nos marcam de alguma forma, seja pelo processo artístico envolvido, seja pela troca com outros artistas naquele período. Mas quando penso em uma personagem me vem sempre Virgínia Sarasvatti de “O crime de Aristóteles”, uma mulher cisgênera que pude interpretar e me marcou porque me tirou daquele lugar comum onde tentam sempre nos manter e nos enquadrar e foi quando eu pude entender que enquanto atriz eu posso fazer qualquer personagem. Foi libertador e um presente gigante iniciar no cinema assim!

ARLON SOUZA - Dia 19 de agosto se comemora o Dia do Artista de Teatro? Qual o maior sonho e desafio quando você pensa na construção dessa carreira? Muitos sonhos?

JENNY MÜLLER - O maior sonho na construção da minha carreira e que é ao mesmo tempo o maior desafio é ser vista como atriz, roteirista, diretora, escritora apenas e não a atriz trans, roteirista trans, diretora trans… E não porque tenho vergonha da minha história, pelo contrário, tenho muito orgulho de toda a minha trajetória, da mulher que sou hoje, com a visão de mundo que tenho... não existiria se não tivesse passado por todas as dores e amores que tive durante esses 28 anos de existência, mas acredito que posso ser bem mais e ir muito além do que a maioria consegue enxergar em mim.

Eu tenho muito a dizer ainda, muito o que contar e não quero ser podada e muito menos limitada. E espero que possa abrir, e arrombar, totalmente essas portas para que outras como eu, não tenham que passar por essas violências que já passei, porque esse enquadramento de dizer que enquanto artista eu não posso explorar as infinitas possibilidades que a arte permite pra mim ainda é uma das grandes violências que sofro. Espero que isso mude e que a visão das pessoas também. Eu quero poder ampliar e expandir esse universo que pulsa dentro de mim.


				
					Conheça história da atriz trans Jenny Müller no Dia do Artista de Teatro
Foto: Arquivo Pessoal / Geike

				
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Foto: Arquivo Pessoal / Geike
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