Partindo do princípio que um clube com milhões de torcedores não deve ser punido por atos irresponsáveis e criminosos de um indivíduo ou de uma pequena minoria, é preciso também admitir que as vítimas precisam ter seus direitos respeitados e existir algum tipo de reparação.
O problema é que, sem uma punição severa, casos de perseguição, ameaças e violência, assim como racismo, misoginia, homofobia e até xenofobia continuarão ocorrendo porque nada de grave acontece com quem comete o delito e nem tem consequências efetivamente danosas para o clube. E nesse cenário, a vítima carrega para sempre a dor do desrespeito e da impunidade.
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Muitos clubes já foram punidos por seus torcedores atirarem objetos como copos plásticos, materiais perfuro-cortantes, explosivos e até as folclóricas e extintas caxirolas no gramado. Ou por acenderem sinalizadores e portarem mastros de bandeiras nas arquibancadas. Mas o que vemos acontecer usualmente é a suspensão dos torcedores por algum tempo dos estádios e a aplicação de multas irrisórias vindas de sentenças de "lesões corporais leves", as quais acabam sendo convertidas em doações de cestas básicas e prestação de serviços sociais. Em casos mais extremos, quando ocorrem confrontos entre torcidas rivais e às vezes de um mesmo clube, as equipes são multadas de forma branda, perdem seus mandos de campo ou jogam nos seus estádios de portões fechados.
Campanhas de conscientização sobre certas pautas nas redes sociais também não vêm adiantando muito. Apesar do gesto simbólico, chega a parecer apenas decorativo o ato de jogadores entrarem com faixas educativas homenageando mulheres, pedindo paz nos estádios, exigindo o fim do racismo ou da homofobia. Nem mesmo os alertas emitidos pelo sistema de som nas arenas consegue conter um canto racista ou de cunho homofóbico vindo das arquibancadas.
Questionada por ser muito tolerante com esses absurdos nas competições sul-americanas, a Conmebol tem se movimentado no sentido de educar os torcedores, nas redes sociais e nos estádios, mas ainda não há efeitos práticos relevantes. De todo modo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e os clubes brasileiros passaram a cobrar a entidade sul-americana com mais firmeza para que as punições sejam mais rápidas e severas, argumentando que casos assim só vão parar quando os clubes começarem a ser punidos para além da multa financeira e da detenção de alguns torcedores.
Para dar o exemplo, é louvável que a CBF tenha realizado o I Seminário de Combate ao Racismo e à Violência no Futebol, reunindo os representantes de clubes e de torcidas organizadas, a cúpula da CBF e da Conmebol, dirigentes da Uefa e da Fifa, além de lideranças de coletivos antirracistas e LGBTQIA+ e artistas renomados.
O presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, afirmou que a luta para conscientizar o universo do futebol sobre o respeito a essas pautas ainda vai levar muito tempo, pois não acaba da noite para o dia. Ao término do encontro, foi citada a criação de grupos de trabalho sobre o assunto e sugerida a perda de pontos para os clubes cujos torcedores pratiquem atos de racismo ou outros crimes nas competições organizadas pela CBF. A proposta deve ser encaminhada aos conselhos técnicos de todas as divisões nacionais do futebol masculino e feminino e pode valer já a partir de 2023. Não será um tema fácil a ser discutido e a obter consenso, pois a perda de pontos envolve conquistas de títulos, classificação para competições internacionais, acessos e rebaixamentos e valores de patrocínios e transmissão. E também sempre haverá a suspeita de “torcedores adversários infiltrados".
Apesar de parecer uma inovação, em 2014, numa situação limite, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), por unanimidade, eliminou o Grêmio da Copa do Brasil, como forma de punição pelas injúrias racistas sofridas pelo goleiro Aranha, do Santos. O clube gaúcho tentou se desvincular do que chamou de uma minoria que não o representa, mas os representantes do STJD, ao entender que não poderiam punir a equipe com a perda de pontos por se tratar de uma competição eliminatória, decidiram pela exclusão do time da competição.
Participando de forma remota no seminário, Gianni Infantino, presidente da Fifa, lamentou que o Brasil esteja presenciando ameaças aos jogadores em redes sociais, ataques a ônibus de clubes, tocaias de torcedores no aeroporto e a invasão de centros de treinamento em razão de resultados negativos. No vídeo, sem citar nominalmente jogadores e clubes, reafirmou a tristeza que é ver a violência sendo direcionada por torcedores contra seus próprios times.
Show de horrores
Toda essa costura em defesa dos direitos humanos ocorre após os recentes episódios racistas na atual disputa da Libertadores da América. A Conmebol fez alterações em seu Código Disciplinar, aumentando a punição aos clubes nesses casos de US$ 30 mil para US$ 100 mil (de R$ 156 mil a R$ 520 mil, aproximadamente, na cotação atual).
Aos torcedores detidos pelas polícias locais brasileiras restou pagar uma fiança estipulada inicialmente em R$ 3 mil no primeiro caso, em 26 de abril, e de R$ 20 mil numa reincidência, em 28 de junho. O torcedor que não teve a quantia determinada pela Justiça brasileira foi deslocado para um Centro de Detenção Policial.
Paradoxo judicial
A prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei, segundo o Artigo 5ª inciso XLII da Constituição Federal de 1988. Porém, legalmente, não é possível converter o flagrante em prisão preventiva, já que a pena seria inferior a quatro anos de detenção, de acordo com o Artigo 313 do Código de Processo Penal.
“Portanto, a fiança aparece como única medida viável e proporcional, sem a qual haveria um tratamento penal mais leve para um delito de igual ou maior gravidade que a injúria racial", explicou o juiz José Fernando Steinberg, durante entrevista sobre a decisão judicial em dois casos envolvendo torcedores do Boca Juniors na Libertadores da América deste ano.
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Sílvio Tudela
Sílvio Tudela
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