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TABUS, TRETAS E TROÇAS COM SÍLVIO TUDELA

'Tabus, tretas e troças; diz como nasceu fake news no futebol

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Sílvio Tudela

24/04/2022 às 9:00 • Atualizada em 11/03/2023 às 11:27 - há XX semanas
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Foto: Reprodução Corria o ano de 1998 e o Brasil havia acabado de dar adeus ao pentacampeonato, ao perder por 3 a 0 para a França, com show e gols de Zinédine Zidane (27’ e 45+1’) e Emmanuel Petit (90+3’), na final da Copa do Mundo, no Stade de France, em Saint-Denis. Mas antes mesmo que os desolados jogadores canarinhos desembarcassem no Brasil, um e-mail assinado pelo “jornalista” Gunther Schweitzer já circulava do Oiapoque ao Chuí e afirmava que a Seleção Brasileira, a Comissão Técnica, a CBF e os jogadores, num grande acordo com a Fifa, haviam vendido o título para a França em troca de um caminho facilitado para a taça em 2002 e do Brasil ser a próxima sede do Mundial no continente americano: “Talvez, isso explique a razão do jogador Edmundo ter declarado a seguinte frase: 'Se as pessoas soubessem o que aconteceu em Paris, ficariam enojadas!’”. Esse é o texto que inicia um dos maiores rumores sobre a "venda da Copa do Mundo" em tempos digitais. Em meio a uma série de teorias da conspiração, como uma jogada política a fim de evitar a chegada da extrema direita ao poder na França, valorizar os jogadores locais vindos da imigração, argumentos como o envenenamento de Ronaldo Fenômeno [vítima de uma convulsão, soube-se depois] e influência comercial da Nike, tudo naquele texto foi sendo adaptado ao sabor da vontade e dos tempos, tanto no esporte como na política. A única verdade do e-mail, até onde sabemos, é a existência do "delator", que ganhou notoriedade e muita fama. Ele realmente existe e apenas repassou para cerca de 500 pessoas, pelo seu endereço eletrônico corporativo da Volkswagen, onde trabalhava, um e-mail para mostrar aos amigos o absurdo do seu conteúdo. De acordo com ele, em entrevista à Globo.com, alguém manteve seu nome na assinatura, mas trocou a função de analista de produção para jornalista, talvez para garantir mais credibilidade. O telefone não foi retirado e não parou de tocar por umas duas semanas, chegando a receber até contato da Polícia Federal querendo investigar o fato.
Jogador italiano Paolo Rossi faleceu em 2020 (Foto: Divulgação)
A adaptação deste famoso e-mail foi ganhando adequações e atualizações no decorrer destes 24 anos, ao gosto do freguês e do internauta. Ressuscitou quando o Brasil conquistou seu quinto título mundial em 2002 e quando o país foi escolhido para sediar a Copa do Mundo em 2014, fatos já previstos no e-mail. Também foi requentado, com detalhes novos e mais picantes na histórica derrota para a Alemanha por 7 a 1. Essa espécie de “texto template” serviu para justificar rebaixamentos de clubes como Bahia e Vitória, Corinthians e Palmeiras, Vasco e Botafogo, Grêmio e Internacional, além de triunfos inesperados de azarões – todos com o subtítulo adaptado ‘Eliminação surpreendente: divulgado o escândalo que todo mundo suspeitava’. E para finalizar, o pai de todos os e-mails da teoria de conspiração cravava a filosofia do spam: ‘Repassem essa informação para o máximo de pessoas possíveis para mostrarmos ao mundo a nojeira que ronda o mundo do futebol, a começar pelo nosso alto escalão’. Mas se o mistério do tema central da coluna de hoje, proposto pelo título, já foi desvendado logo de cara pelos apaixonados por futebol e conhecedores do mundo digital, é absolutamente importante dizer que os boatos conspiratórios no universo do torcedor já funcionavam muito antes da existência da internet. A primeira que me vem à memória, e a qual muitos aqui se lembraram, é a bombástica notícia veiculada em emissoras de rádio e televisão sobre um suposto doping do jogador italiano Paolo Rossi (1956-2020), que fez o que podia e não podia na partida entre Brasil e Itália, um dia após a derrota verde e amarela por 3 a 2 no jogo que ficou imortalizado como a “Tragédia do Sarriá”, na Copa do Mundo da Espanha, em 1982. A euforia pela reversão do resultado com a imediata anulação do jogo e a possibilidade de avançar às semifinais foi tanta que, nas poucas horas em que o boato circulou, a esperança reapareceu no Brasil e apagou a decepção com aquela que foi a mais celebrada seleção desde o Tricampeonato Mundial, em 1970. Mas era tudo mentira, os veículos de comunicação da época abordaram o assunto como pitoresco, desmentiram o fato, a desilusão continuou e o baile seguiu, com a Itália vencendo a competição. Em ótima reportagem sobre a trajetória do Carrasco do Brasil [Paolo Rossi fez os três gols italianos], o portal Trivela relembra essa lenda de que o “desacreditado” centroavante estaria dopado: “Só assim para alguns tentarem explicar a mudança súbita do atacante. O detalhe é que Pablito, dois quilos abaixo de seu peso na campanha, foi sorteado para o exame antidoping no Sarriá. O resultado negativo a qualquer substância proibida pela Fifa reafirmava, mais que sua inocência, a sua excelência. E a injeção de ânimo o conduziria no restante da Copa”. Para nós, mortais torcedores que muitas vezes nem acreditamos tanto assim nos árbitros do VAR e nos tira-teimas computadorizados, resta o ridículo de continuar defendendo, mesmo ludicamente, o que somente nossos olhos queriam ter visto, apesar do risco de cancelamento em tempos digitais. Mas, em defesa do amor ao futebol, vale dizer que nossa reação emocional e bem-humorada pode ser apenas uma forma de encerrar logo uma discussão irrelevante e sem fim, para a qual a verdade e a racionalidade não têm muita paciência. Mas essa é outra história...
Sílvio César Tudela - @silviotudelaFormado pela ECA/USP, mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA e pesquisador sobre a relação entre a narrativa esportiva e a construção da identidade cultural brasileira, principalmente no universo do futebol. Tem passagens por veículos de comunicação nacionais e cobertura dos bastidores de alguns dos principais clubes do país.
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