Em uma cena de “Babenco — Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, filme de Bárbara Paz sobre o marido, o cineasta Hector Babenco, morto em 2016, ele narra como gostaria de passar seus últimos dias. Viajar pela Argentina e comer no Sul da França eram dois desejos, que a diretora planejava registrar no longa. Não deu tempo, ele partiu antes.
Desde cedo, a atriz, filha caçula de quatro irmãs, teve que que lidar com a morte. Perdeu o pai aos 6 anos, a mãe, aos 17. Nessa mesma idade, sofreu um grave acidente de carro, que lhe deixou marcas pelo rosto (“me disseram que eu nunca seria atriz de televisão por causa das cicatrizes”).
A intimidade com a finitude da vida lhe cercou de uma casca fundamental para rodar o delicado documentário, que traça um paralelo entre a arte e a doença do marido, com câncer. Quem assiste ao filme, coprodução da Gullane que será exibida dia 2, no Festival de Veneza, se comove com o esforço de Babenco para viver — e o de Bárbara, para estender o tempo dele aqui na Terra. — Sempre quis saber como salvar uma pessoa, mantê-la viva — diz ela que, de certa forma, fez isso com o filme e o livro “Mr. Babenco: Solilóquio a dois sem um”. — Pra mim, Hector não foi embora, virou a câmera, está em todos os lugares.
Câmera que Bárbara, de 44 anos, não larga mais. Ela já tem argumento pronto para um segundo longa, desta vez, sobre solidão feminina. Mas antes de rodá-lo, estreia, em outubro, a peça “Misery, louca obsessão”, baseada no livro de Stephen King. Nesta conversa, a atriz fala sobre a carreira e dá uma verdadeira aula sobre como a vida continua, sempre e apesar de tudo. A dela, segue intensa e vai virar filme produzido pela LC Barreto. — Agora, meu coração “babenquiano” vai para o mundo. Em 2020, a Bárbara renasce.
É bonito ver, no filme, ele te ensinando a fazer cinema...
Nossa história foi regada a cinema. Ele tinha uma inquietação que eu alimentava. Isso o fez relaxar e me doar sua melhor parte. Somos dois sobreviventes, por isso, ele teve essa confiança. Fiz um teaser quando ele já estava na morfina, para que tivesse vontade de viver. Ele chorou e disse: “Até que sou interessante. Você pode fazer o que quiser, te dou meu passaporte” ( se emociona ).
Há cenas comoventes, idas e vindas ao hospital. Em algum momento achou que não fosse conseguir continuar?
Lido com morte a vida inteira, perdi todas as pessoas que importavam na minha vida. No começo da nossa relação, Hector dizia que não queria uma enfermeira, mas nasci cuidando da minha mãe. Pensava que não podia deixar de registrar o que estava vivendo e, ao mesmo tempo, se poderia mesmo fazer aquilo. Ele pedia: “Me filma”. Não queria que ninguém falasse dele, dizia “Tô vivo, quero falar”. Os momentos mais difíceis eram no hospital. Tinha uma cena, um dia antes de ele morrer, em que dizia “tá me dando um negócio, se acontecer algo...”, e pedia para ser velado na Academia de Cinema. Tirei, era muito forte.
Você trabalha desde os 9 anos. Fez artesanato, foi animadora de festa infantil... O trabalho te salvou?
Venho de família simples, que foi desconstruindo com as perdas. Mas sempre tive uma força. Queria ser adulta logo pra cuidar da minha mãe, comprar as coisas pra ela. O trabalho era refúgio. As perdas me fizeram mais forte, mas minha história é maior que isso. Fiz mais de 30 peças, construí coisas. Deixei de ser órfã há muito tempo. Achei que meu primeiro livro seria sobre a minha vida, mas dei espaço para descansar de mim. Ser atriz é descansar de mim. A gente preenche um buraco com personagens, a Bárbara fica em casa. Virei uma pessoa pública por causa da minha história na Casa dos Artistas. Foi difícil fazer com que enxergassem a atriz.
Se arrepende da Casa dos Artistas? Babenco chegou a rodar uma cena de romance sua com o Supla para o último filme dele, “Meu amigo hindu”, que acabou não entrando... Aliás, do Supla para o Babenco é um mundo, né?
Não me arrependo. Foi um acontecimento lindo, comprei minha casa. Essa cena de que você fala ficou fake. O Hector queria contar toda a minha história no filme, ele estava com essa necessidade de falar tudo. Mas o filme era sobre ele. Consegui que tirasse cinco cenas! Agente se apaixona por pessoas, são idades diferentes. Fui trocando de casca. Me lapidando.
Você é conhecida pelos papéis intensos na TV. Acha que imprime sua bagagem de vida nos personagens?
As coisas se misturam, a gente empresta corpo e vivência para as personagens. Tem gente que não tem história de vida e constrói aprofundamento na técnica. Tenho que cuidar para não aprofundar muito, porque é fácil esses acessos dentro de mim. Meu pior e melhor estão ligados a dor, a perda. O difícil é ficar na superfície. O teatro me liberta. Selton ( Mello ) me disse, quando fiz teste para “Sessão de terapia”, que olhava para mim e já via toda a história. Meu olhar fala muito,é velho, triste, há muita história no meu rosto. Achava que tinha depressão, mas descobri, na análise, que não é, porque gosto da vida, de trabalhar. Tenho uma tristeza na alma, mas que pode ser positiva, me faz criar e amar melhor. Não preciso sufocá-la com remédio.
Acredita que quebrou um tabu ao ser uma atriz de TV com cicatriz no rosto?
O meu eu consegui quebrar. Eu fazia fotos, capa de revista com a minha cicatriz e tiravam no Photoshop. Fiz teste para novela do Roberto Talma. Luz de teste é ruim, né? A assistente ligou falando que tinha sido o melhor teste, mas que precisava me dizer que eu nunca faria televisão, nunca seria atriz com essa cicatriz, que o Talma tinha ficado assustado com o tamanho. Aquilo doeu. Como escapar de algo que sabe que nasceu pra fazer? Quem era ela pra dizer que não podia? Eu sabia manipular minha cicatriz, com o cabelo, com maquiagem, pra ficar melhor no vídeo. Falei: vou ser a primeira atriz com uma cicatriz no rosto. A gente não vê muitas. Homem pode, mulher, não...
Depois da intensa relação com o Babenco, acha que vai se apaixonar de novo?
Nasci para amar, preciso do outro para respirar. Hector sabia e dizia: “Você é melhor amando. Vou morrer e você não vai para a clausura, seguirá sua vida”. Seria crueldade pensar que nunca mais amaria. Não é justo. Hector ficaria triste. Claro que essa história nunca mais vai acontecer, mas acontecerá diferente. Espero construir muitas ou ter mais uma grande história. A única certeza é que o fim é certo, mas o que fazer até lá? Tenho muito cinema para fazer e muito amor ainda pra dar.
Está lançando o filme num momento em que o cinema brasileiro está na berlinda...
Um país sem cultura é um país sem alma. Sou um exemplo vivo, fui construída por tudo que as instituições me deram gratuitamente. Cheguei aos 17 anos em São Paulo, com muito pouco dinheiro, atrás do sonho de ser atriz. Os Sescs me alimentaram, fiz todos os cursos grátis, o governo me deu tudo. Se eu não tivesse esse acesso à cultura, não seria a mesma. Na Mostra de São Paulo, tive oportunidade de ver os melhores filmes do mundo, de conhecer vários países através do cinema. Limar isso é um talho, fora o que estão fazendo com os trabalhadores da cultura. Muitas famílias dependem desse trabalho. Falta o entendimento. Não estou falando de esquerda ou direita. Sou a única brasileira em Veneza, com um filme feito quase todo com recursos próprios. Tive apoio, sim, mas fiz o filme antes, depois consegui recuperar um pedaço do dinheiro.
O que significa estar com seu filme no Festival de Veneza?
A gente entrou numa competição só de documentários sobre cinema, o Venice Classics. Tem um filme sobre ( Federico ) Fellini, outro sobre ( Andrei ) Tarkovski, o Babenco. Acho que ele mexeu as pecinhas lá de cima, tipo "ó, me põe aqui ao lado dos grandes".
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Redação iBahia
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