“E a gente canta/ E a gente dança/ E a gente não se cansa/ De ser criança/ A gente brinca/ Na nossa velha infância...”. Os versos do megassucesso dos Tribalistas se concretizaram durante o encontro festivo de um deles com crianças da Escola de Música do Spanta, da comunidade Santa Marta, na última segunda-feira, dia 17. O alto-astral característico de Carlinhos Brown contagiou alunos de percussão do projeto comandado por Caliquinho, mestre de bateria do G.R.E.S. São Clemente, entre árvores, trilhas, cavernas e pontes do Parque Lage, no Jardim Botânico. Conhecido por seus figurinos excêntricos e coloridos, o músico surpreendeu mais uma vez, surgindo para os pequenos como Papai Noel. Na tarde primaveril em que os termômetros bateram os 40°C, ele trocou as tradicionais botas do Bom Velhinho pelas sandálias no estilo gladiador e dispensou o barbão branco postiço por seu próprio cavanhaque branco e preto, devidamente redesenhado minutos antes das fotos para a revista Canal Extra.
— Tá na régua (ou seja, milimetricamente aparado)! — elogiou um dos meninos, enquanto o artista dava os últimos retoques no visual.
A partir daí foi só diversão: Brown convidou João Pedro Nascimento Silva, de 7 anos; Lucas William Ribeiro dos Santos, de 10; Gabriel Eduardo Nascimento Paulino, de 11; Matheus Pereira Fernandes dos Santos, de 12; e as gêmeas Kerssyane e Karina Mendes Braga Valentim, de 13, para uma viagem imaginária em sua companhia, em que o cajado todo enfeitado com miniaturas natalinas e pisca-pisca virou uma máquina voadora. E, se olhassem bem com os olhos do coração, era possível sentir uma chuva de presentes caindo do céu — na verdade, o que caía eram frutas secas, arremessadas por um mico travesso, lá do alto da árvore. A garotada só achava graça.
— Nos últimos 35 anos, eu me dediquei a me aproximar das crianças, com projetos sociais e educativos. E fui aprendendo com elas, porque também sou um meninão. Brinco o dia inteiro, com todo mundo! Essa minha paixão pela pintura (além de cantor, compositor, percussionista, arranjador, produtor e agitador cultural, ele é artista plástico) só comprova que a criança que eu fui não morreu aqui dentro. Eu pinto o sete, literalmente! Não sei desenhar um copo, mas tenho nas minhas telas a abstração infantil — observa o também técnico do “The voice kids”, que reestreia no próximo 6 de janeiro.
Ao longo das outras três temporadas do programa, Brown desenvolveu maior autoconfiança ao lidar com os minicandidatos:
— Eles me deixam menos tímido, me veem com mais naturalidade, do jeito que eu estiver. Às vezes, eu aparecia de cocar em meio aos adultos, e eles estranhavam, me chamavam de maluco. Como “maluco”, se estou vestido de índio brasileiro? Adoro roupas primitivas, tudo o que é cultural. Minha barba em dois tons, também, é muito infantil. Que homem tem coragem de fazer igual?
Perto dos pequeninos, ele também não se envergonha de deixar a emoção rolar, diante de um Brasil inteiro. Em janeiro deste ano, foi às lágrimas quando o duo mirim Maria Clara e Mariana cantou “Trevo (tu)”, de Anavitória. Os versos “Tu, que tem esse abraço casa/ Se decidir bater asa/ Me leva contigo pra passear/ Eu juro afeto e paz não vão te faltar/ Ai ai ai” bateram fundo. Ele explicou: “Essa é uma canção que minhas filhas gostam de cantar pra mim. Tudo o que a gente quer é passear com o filhos!”. Pai de seis (Nina, de 26 anos; Francisco, de 23; Miguel, de 21; Clara, de 20; Cecilia, de 12; e Leila, de 9), ele não se culpa pelas faltas em casa, inerentes à profissão de músico.
— O melhor da ausência é quando você tem uma presença de qualidade. Há 15 dias, cheguei com as meninas da Eurodisney. Foi uma delícia, a gente se acabou! Agora, vou levar os dois garotos para os Estados Unidos comigo — conta.
Em 2017, o técnico não se conteve ao ouvir o paulistinha João Vitor Mafra, de 10 anos, interpretar no palco do “Kids” o hit “Ben”, do Jackson Five.
— Ali, me veio um turbilhão de sentimentos. Pensei: “Meu Deus, quando eu era pequeno, sonhava ser artista e adorava cantar essa música. Agora, olha eu aqui tendo que avaliar uma criança com a mesma canção”. Música é reconexão, mexe com o psicológico. Se há lágrimas, é porque foi bom — afirma o baiano, assumindo-se mais emotivo que racional: — Sou todo coração, esse é meu maior erro. Às vezes, eu deveria ser mais durão. Tem um menino que me procurou umas dez vezes pedindo ajuda porque a mãe dele tinha morrido. E eu paguei o funeral todas as vezes, só fui me dar conta disso na última. Não raciocino.
Tamanha empatia (e simpatia) acabou por alçar Brown ao posto de novo ídolo infantil. Não é raro que ele receba por meio de suas redes sociais vídeos de crianças dizendo que o adoram, contando que estão com saudade e mandando beijos.
— Veja só, que graça! Essa garotinha está “morrendo de saudade”, mas nem me conhece pessoalmente... — comenta, ao exibir uma dessas mensagens no celular para a repórter.
Teve até fã mirim encantada com os dreadlocks do artista. Na última temporada do programa, Mariah Yohana, de 9 anos, roubou a cena ao escolhê-lo como técnico e pedir para pegar em seu rastafári: “Brown, meu sonho é tocar no seu cabelo!”, contou a paraibana de sotaque fofo, sendo prontamente atendida e festejada com um “Ajayô!”.
— É meu grito de paz. Não considero uma marca minha, porque isso todo baiano fala no meio da rua, geralmente no carnaval dos Filhos de Gandhi. Mas é uma expressão do bem, extremamente cristã, que agrega paz, fraternidade, conforto. E tem vários significados: “Se Deus quiser”, “A paz se faça presente”, “Seja bem-vindo”. Traz uma mensagem de final feliz, de fechar um ciclo com positividade — explica.
Tudo a ver, portanto, com as festas de fim de ano. Natal, por exemplo, é uma data muito especial para Brown, por muitos motivos...
— Pra começar, minha filha Cecília nasceu num 25 de dezembro. Uma coisa linda, reinando absoluta no berçário. Só tinha ela. Festejamos o aniversário dela e o Natal junto, mas tenho que dar dois presentes, ela não aceita um só — conta o pai coruja, completando: — Além do mais, é uma festividade muito marcante desde a minha infância. Arrisco dizer que minha maior decepção da vida aconteceu num Natal, quando descobri que Papai Noel não existia, aos 11 anos. Me avisaram que eu não ia mais ganhar brinquedos, só roupas. Levei um susto, não quis acreditar que aquilo era um sonho de criança. Mas logo passou, e eu continuo acreditando nessa figura querida até hoje!
Como não acreditar em toda essa magia, se ele mesmo já experimentou estar na pele do personagem tantas e tantas vezes, fazendo a alegria dos mais carentes de atenção?
— Na Bahia, não existe essa tradição de “alugar” um Papai Noel para a noite de Natal. É uma dificuldade achar um! Então, quem se dispõe é disputado, vai a todos os lugares. Eu costumo visitar instituições e escolas, surpreendo comunidades... Adoro entrar num carro cheio de brinquedos e sair por aí, sem rumo. Quando vejo uma ruazinha no interior, que ninguém dá nada por ela, entro, observo e, pouco tempo depois, já estou fazendo a festa com a criançada — revela o soteropolitano que, aos 56 anos e com porte atlético, aproxima-se do “Bom”, mas passa longe do “Velhinho” : — Eu adoro fazer atividades físicas! A percussão me exige estar sempre em movimento, com os braços fortes.
Ali no Parque Lage, interagindo com Brown de roupa e gorro vermelhos, as crianças do Santa Marta acharam interessante estar diante de um Papai Noel inédito aos seus olhos: nem idoso, nem gordinho, nem de bochechas rosadas ou pele alva.
— Claro que pode existir Papai Noel negro! É importante para pararem com o preconceito, o racismo, o bullying... — enumerou o esperto Matheus.
O artista concorda, em parte:
— Papai Noel não tem que ter cor. No Brasil, ele representa a miscigenação brasileira. A sociedade brasileira já foi muito mais unida. Na última década, o que mais eu tenho ouvido falar é na separação entre negros e brancos... Não gosto disso. A melhor forma de você lutar pela cultura negra é mantê-la. Podemos até querer nos afirmar na cultura do outro, mas não temos o direito de exigir que haja um Papai Noel negro. Talvez, Papai Noel seja branquinho porque nasceu na Lapônia. Se ele tivesse nascido em Adis Abeba (na Etiópia, África), seria negro. Estamos falando de um espírito de Natal. O que redime tudo isso é que o Natal é do Cristo, que nasceu para todas as etnias. E o Cristo negro nós chamamos de Oxalá.
Cria do bairro do Candeal Pequeno de Brotas, em Salvador, onde também nasceu, Browm lembra que, quando criança, Papai Noel tinha um outro nome para ele:
— Era Lomanto, o cara que distribuía presentes lá na minha comunidade. O que hoje eu sei sobre trabalhos sociais, aprendi com pessoas me ajudando. É o ciclo que se renova.
Em suas lembranças natalinas mais remotas, está o menino Antônio Carlos Santos de Freitas (nome de batismo do cantor) sentindo o cheiro da folha de pitanga pisada invadindo a casa.
— Era uma tradição encerar a casa inteira e depois espalhar pelo chão areia branca e folhas de pitanga. Esse perfume eu trago comigo até hoje. Não tínhamos árvore de Natal, nossos enfeites sempre foram engaços de dendê pintados com tinta prata. E a estrela de Davi desenhada com cal na porta de casa. Quando começaram a chegar as bolas coloridas, aí ficou ainda mais bonito — rememora, saudoso.
Na ceia baiana da casa de Brown, o peru “bebu”, marinado, perde todo o seu reinado para a frigideira.
— É feita com bacalhau ou siri catado e leite de coco. Hummm... Chega a me dar água na boca! E a mesa é sempre muito farta de frutas, principalmente siriguela, umbu e jabuticaba — detalha ele, que este ano vai passar o Natal na companhia dos pais em Salvador, relembrando os bons tempos.
O mais velho entre nove irmãos, que passou a infância vendendo quitutes para ajudar a mãe a sustentar a casa, só estudou em escola tradicional por sete ou oito meses, aprendendo a ler e a escrever no Mobral (antigo programa de alfabetização do governo federal). Mas, hoje, mostra-se extremamente hábil com as palavras. Tanto, que se firmou como um dos maiores compositores da música baiana:
— Sempre gostei muito da língua portuguesa, e fui aprendendo aos poucos, com as pessoas me corrigindo: “Tá falando errado!”. Vou lhe dizer: meu maior professor linguístico é Cid Moreira. Eu assistia ao “Jornal Nacional” só para ouvi-lo falando corretamente. E minha maior professora musical é Maria Bethânia, que expressa direitinho sílaba por sílaba nas canções. E tive meus ídolos tropicalistas: Gil, Caetano, Tom Zé... Todos foram grandes referências pra mim. Por isso é que eu digo que boa música é sinônimo de boa educação.
Do carnaval baiano, festa na qual é presença marcante há 40 anos, Brown não quer mais fazer parte. Ao menos, como empreendedor. Quando 2019 chegar, ele vai diminuir o ritmo.
— Se fosse só comandar um bloco... Mas não, é responsabilidade demais. Eu tenho que pagar tecido que falta, resolver instrumentos de várias baterias... Amo a cultura, mas sou um intérprete. O carnaval da Bahia é imutável, alegre. Eu não vou fazer nenhuma falta — decreta, acrescentando: — Só não vou deixar de participar da Lavagem do Bonfim e da Enxaguada de Iemanjá. Meu último compromisso na Bahia é em 2 de fevereiro. Aí, viajo para os Estados Unidos numa turnê com os Tribalistas, fico até o dia 20, mais ou menos, volto para um show na Costa do Sauípe e depois vou fazer o carnaval em São Paulo e nas Ilhas Canárias (Espanha). Lá são só duas horas de trabalho, e não oito, dez. Vou tirar férias! É uma superação pessoal.
Antes, porém, em janeiro, Brown tem um compromisso firmado com Gabriel Paulino. Durante esta reportagem, o menino do Santa Marta fez um pedido inusitado ao ídolo:
— Você quer ser meu padrinho? Nunca tive um...
Compadecido, o baiano respondeu:
— Aceito sim. Vou pegar o contato da sua mãe e, em janeiro, vou lá na sua casa te batizar, celebrar com bolo e guaraná.
Tem Papai Noel melhor que esse? Que presentão!
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Redação iBahia
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