Manoel Carlos merece aplausos de pé. O autor de novelas, responsável por sucessos como 'Por Amor' (1997), 'Laços de família' (2000), 'Mulheres Apaixonadas' (2003), entre outras, após cerca de quatro décadas de ofício se despede do gênero, nesta sexta-feira (18), quando coloca um ponto final na trama das 21h 'Em Família'. Todos os entendidos em texto de telenovela sabem que é, sem dúvida, se não a maior, a mais triste perda para o horário nobre da Globo. A decisão partiu do próprio novelista que, durante entrevistas, disse querer daqui para frente se dedicar apenas a obras de tiro curto, como seriados e minisséries. Afinal, já estava complicado para ele, aos 81 anos, embarcar em uma maratona com cerca de quarenta páginas de diálogos construídos a cada capítulo, que resultavam num calhamaço de mais de nove mil folhas até a cena final.
Maneco – assim como é carinhosamente chamado – se mostra ser um cronista do cotidiano em todas as suas tramas. O autor comporta-se como um analista que observa, enquanto ouve Bossa Nova, um grupo de pessoas que se movimenta em uma cidade, ou melhor, pedaços idealizados dessa cidade. Daí ele cria tipos com personalidades, perfis e problemas diferentes, como a velhice, o ciúme doentio, a violência doméstica, o alcoolismo, entre outros, e desenvolve-os. São temas densos tratados sob o enfoque "a vida como ela é", bem ao feitio do autor. Adepto de diálogos longos, declaratórios, realista, factuais e urbanos, e de uma narrativa mais lenta e naturalista, feita propositalmente para que tenha semelhança com a vida, ele conseguiu criar enredos e personagens capazes de aproximar o telespectador do folhetim. Um estilo que lembra, e muito, o do escritor Nelson Rodrigues. Veja também: Crítica: Personagem mórbido de Vanessa Gerbelli é o prato cheio da novela Em Família Crítica: bem produzida, Meu Pedacinho de Chão acerta ao apostar em alta dose lúdica Crítica: Geração Brasil cai bem para o horário, mas precisa tomar cuidado com exageros Nas novelas de Manoel Carlos, o público que está atento a cada cena, a cada boa sacada da sonoplastia, a cada diálogo forte, a cada interpretação brilhante dos atores graças em grande parte ao seu texto primoroso, não raro, confunde ficção com realidade, revela emoções contidas e omitidas. Ninguém, nesses anos todos que a teledramaturgia existe, foi capaz de chegar a tanto. O estilo do autor se opõe, por exemplo, ao ritmo eletrizante de novelas como 'Avenida Brasil' (João Emanuel Carneiro, 2012). Seus personagens são mostrados em ações comuns e humanas, tais como ir à feira, frequentar o café de uma livraria, reclamar do congestionamento, andar no calçadão da praia, passar numa banca para comprar o jornal do dia e, consequentemente, conversar com o jornaleiro sobre o aumento absurdo do preço da gasolina. Nas tramas dele, se há discussão entre personagens, a regra é não ter cortes de cena. A briga começa na cozinha, passa pelo quarto, pela sala, pelo elevador e termina fora do prédio. Todos se metem, incluindo a babá, a empregada, a vizinha, o porteiro. Não há exatamente vilões que explodem carro ou que matam simplesmente por serem maus, mas gente doente, perturbada, incompreendida, psicopata em diversos graus. O final não se resume ao punidos ou recompensados que os outros autores aderem, e sim curados ou incuráveis. Um prato cheio para o ramo da psicologia.
As Helenas Outra característica marcante em seus folhetins são as nove protagonistas chamadas Helena. Ao contrário das mocinhas encontradas nas obras da maioria dos autores – que parecem sem alma, distantes e de plástico – as de Maneco possuem particularidades e características de mulheres reais. Todas são cariocas, moram no Leblon – bairro nobre do Rio de Janeiro onde o novelista é declaradamente apaixonado – são contemporâneas, de classe média, que não têm vergonha de expor suas raivas, medos, frustrações e pequenas alegrias do cotidiano. São mulheres verdadeiras, sinceras, trabalhadoras, com defeitos e qualidades, que colocam a família em primeiro lugar, que são capazes de cometer erros e acertos, de gritar, silenciar, rir ou de chorar quando há espaço para isso. As Helenas, embora tenham sido diferentes quanto aos seus dramas, têm um traço em comum: o sacrifício em benefício da filha. Foi assim quando a Helena de Regina Duarte abriu mão de seu filho em nome da filha Maria Eduarda (Gabriela Duarte), que perdera seu bebê horas depois do parto, em 'Por amor'. Foi assim também quando a Helena de Vera Fischer, em 'Laços de Família', abriu mão do romance com Edu (Reynaldo Gianecchini) para a sua filha Camila (Carolina Dieckmann). E quando, na mesma trama, Camila descobre que é vítima de leucemia e, ainda que esteja na faixa dos 40, Helena decide engravidar para gerar um doador de medula compatível com a filha para poder salvá-la do câncer.
Como esquecer? O público nunca vai esquecer da inconveniente e espevitada Íris (Deborah Secco, 'Laços de Família'), que andava de calcinha pela casa e aprontava como uma adolescente imatura. De Capitu (Giovanna Antonelli, 'Laços de Família'), que optou ser garota de programa para ajudar os pais a pagar as contas, a criar o filho e a pagar a faculdade. De Dóris (Regiane Alves, 'Mulheres Apaixonadas'), que não tinha amor pelos próprios avós e maltratava-os. De Heloísa (Giulia Gam), possessiva, ciumenta e dramática. De Marta, vivida por Lília Cabral ('Páginas da Vida', 2006), uma mulher arrogante, intransigente, que criticava o tempo inteiro o marido e os filhos com diálogos amargos, capaz de rejeitar a neta com síndrome de Down. Houve a cena em que Carolina Dieckmann raspa a cabeça para representar o processo de quimioterapia, a cena em que a personagem de Lília Cabral morre durante um assalto em um posto de combustível, com sequências emocionantes e levadas ao ar em Laços de Família. Houve a cena do tiroteio no Leblon com a personagem de Vanessa Gerbelli (Mulheres apaixonadas), numa época em que o número de mortes por bala perdida no Rio de janeiro assustava. Todas essas cenas pararam o Brasil e jamais sairão fácil da memória do telespectador. Causa e Efeito Manoel Carlos sabe que novela das nove é o produto mais assistido do país e, por conta disso, tudo que é exibido ali tem extrema repercussão. Batizadas de merchandising social, graças ao tema 'prevenção ao câncer de mama', tratado em 'Mulheres Apaixonadas' e 'História de Amor' (1996), a procura por exames preventivos aumentou no Brasil inteiro. O dramaturgo também causou discussão no Congresso sobre direitos dos idosos, que acabou inspirando até a criação do Estatuto do Idoso, além de ter sido o responsável por ampliar o número de mulheres em grupos anônimos de ajuda tanto em 'Mulheres Apaixonadas' quanto agora na novela 'Em família'. Maneco foi um dos autores que mais sofreu para manter suas telenovelas-crônicas no ar. Virou o rei da notícia quando em 'Água Viva' (1980) abordou o topless, um escândalo na época. Quando em 'Laços de Família' a filha se apaixonou pelo namorado da mãe, a justiça proibiu a participação de menores, a igreja não liberou paróquias para a cena de um casamento em que a noiva estava grávida. Quando em 'Mulheres Apaixonadas' a professora se apaixonou por um rapaz menor de idade, quando duas amigas adolescentes se descobrem apaixonadas, entre outras polêmicas. Mas com ele não há pressão por audiência e nem empecilho da justiça que o faça render-se ao seu propósito e estilo. Ainda que suas duas últimas novelas 'Viver a Vida' (2009) e a atual 'Em família' não tenham deslanchado no ibope, Manoel Carlos encerra o último capítulo de sua trajetória nas telenovelas respeitando sua narrativa e quem acompanha, levando ao ar cenas que se vê da vida, doa a quem doer. "Em família" Direção: Jayme Monjardim e Leonardo Nogueira Quando: Segunda a sábado, às 21h, na Globo Acompanhe o resumo completo das novelas aqui!*Texto colaborativo, supervisionado por Aline Caravina
Maneco soube, como nenhum outro autor de telenovelas, criar personagens humanos que interagem muito bem com o telespectador |
As protagonistas 'Helenas' marcaram o horário nobre da Globo nas obras de Manoel Carlos |
Íris, vivida por Deborah Secco em 'Laços de Família',é um dos personagens inesquecíveis de Maneco |
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