Bruno Cezario suspende as sobrancelhas enquanto se olha num espelho de corpo inteiro. Bota as mãos nos dois bolsos, dá um giro sutil para a direita, outro para a esquerda. Olha para o stylist Rogério S. e balança a cabeça fazendo sinal de “o.k.”, aprovado. Pedro Flutt estica uma perna no ar e emenda o movimento numa pirueta. Lucas Freire zanza de um lado para o outro com as mãos na cintura e um cigarro apagado na boca. Vinicius Couto e Artur Figueiredo cochicham sentados em cima de uma mesa, com as pernas cruzadas. Outras cinco pessoas figuram na cena, composta por homens e mulheres. No total de dez, oito delas vestem saias. Inclusive (e não por acaso), os rapazes. A exceção é o casal de fotógrafos Juliana Rocha e Bruno Machado.
“Os sete homens de saia” poderia ser nome de filme, livro, novela. Mas é apenas o jeito como ficou batizado o encontro desta turma, que está aí para bancar a tendência, que extrapola as quatro paredes do estúdio fotográfico e é o suprassumo da moda masculina na estação do sol. — Sempre peguei roupas emprestadas nos armários da minha mãe e da minha irmã mais nova. Já me apropriei de várias peças. Uso vestido florido tipo blusão e saia de qualquer cor. Para viver, para ver gente por aí — simplifica Lucas, de 26 anos, que se apresenta como “um jovem artista e modelo espontaneamente”.
Fora de um estúdio congelado por um aparelho de ar-condicionado, vestir saia no verão virou questão de sobrevivência para estes meninos. Na rua, no bar, no vernissage, na sala de aula ou onde quer que seja, todo dia é dia. E, apesar da pouca intimidade com a peça, eles atestam em eco que o hábito é muito mais confortável que o de usar calça. Principalmente, por causa do calor. — É fresco, é arejado, é solto — elogia o músico Arthur Braganti, de 34. — E dá maleabilidade, valoriza o movimento do corpo. A saia propõe uma nova coreografia no jeito de andar.
Batendo perna em meados do ano passado no Rio Comprido, o modelo Dimerson Frazão, de 22, dono de um black power na cor azul, encontrou sua primeira saia num brechó. Estilo escocesa, kilt, quadriculada. Não demorou para se render à segunda, comprada no Grito Bazar: uma jeans reta, até o pé. — Onde tiver uma portinha, eu e minha namorada entramos. Eu já curtia a ideia de montar um look com saia, mas nunca tinha achado uma peça com um corte ideal para o corpo masculino — lembra ele, satisfeito com as aquisições.
Depois do frescor, a desconstrução de gênero — ou seja, o fim da teoria de que a roupa “x” é feita para mulheres e a “y” para homens — é outro argumento sustentado por adeptos do visual. No corpo deles, a saia tem “função social”. — É muito louco como a mulher sempre pôde usar roupa masculina. Por que tem que ter essa distinção? — indaga o stylist Vinicius, de 28. — A saia é um símbolo feminino. E dentro de um contexto machista, o homem de saia é uma atitude bem desconstrutiva. A gente tem que aproveitar esse momento de liberdade de expressão e de colocação para usar.
Se o efeito é positivo ou negativo, nem os modelos sabem expressar. Fato é que a saia ganha espaço, sim, no guarda-roupa masculino e, no embalo desse movimento, grifes como Handred, e os estilistas Helena Pontes, Guto Carvalhoneto, João Pimenta, entre outros, engatam a primeira. — Claro que causa estranhamento. Mas o que percebo é que existe uma sensação de empoderamento por trás da atitude do homem de usar saia. Há uma força grande de liberdade de expressão na maneira de se vestir e de explorar o corpo — observa Luiz Wachelke, coordenador de moda do Istituto Europeo di Design (IED).
A procura da saia perfeita virou uma gincana para o público masculino. Na maioria das vezes, os adeptos apelam para as araras das lojas do sexo oposto. Ainda são raras as marcas que fazem modelos exclusivos para homens e poucas as que apostam em peças sem gênero. Encasquetada com isso, a estilista Helena Pontes se propôs o seguinte: desenhar modelos que se adaptem aos dois corpos. Fez uma saia envelope, um quimono e uma chemise que chamou de “agêneros”.
— Acho superbonito homem de saia. Mas percebi que tinha dificuldade de atingir este público com as peças que fazia. Por isso, impus o desafio de expressar o meu design de forma neutra, com um corte diferenciado e peças que combatessem a ideia de gênero — comenta Helena. O processo contrário surpreendeu o estilista André Namitala, à frente da Handred, definida por ele como “uma marca masculina confortável para as mulheres usarem”.
— Aconteceu de forma orgânica. O diferencial da marca sempre foi explorar tecidos que não pertenciam ao vestuário masculino. Fiz muita camisaria de linho, e as mulheres compraram. Então, passei a desenvolver um estudo sobre peças que poderiam ficar bem para o homem e para a mulher — relata André. Sensação na última edição da São Paulo Fashion Week, em outubro, o desfile do estilista João Pimenta enfileirou na passarela homens de saia em tons de pastel e vestidos com modelos irreverentes. Na semana passada, em Londres, a estilista Vivienne Westwood vestiu homens de minissaia na coleção de outono-inverno 2017/2018. Pela primeira vez, ela apresentou num desfile peças sem distinção de gênero.
— Acho que existem saias e saias: as que foram pensadas para a mulher e as que foram pensadas para o homem. Fugi à regra fazendo modelos plissados e pregueados com o intuito de bagunçar a história do gênero. Quando faço uma saia masculina, mantenho a estrutura da calça, de cós e quadril — explica João. — Você não precisa pegar a saia da sua mãe ou irmã e vestir. A fórmula mágica para encontrar um meio-termo entre o corpo da mulher e o do homem, para ele, é fazer a transposição do guarda-roupa masculino para o feminino.— Adaptar a mistura dos corpos é muito difícil. Se essa transição da moda sem gênero acontecer, no futuro, acredito que vai partir do armário masculino. Os homens não vão querer se vestir de mulher. As roupas femininas têm muita firula. E a mulher é mil anos mais inteligente que o homem na hora de se arrumar. Ela é livre, sabe se divertir com a roupa conforme o astral com que acorda naquele dia. O homem é muito preso à questão do vestuário — pondera o estilista. Presidente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda (Abepem) e co-autora do livro “Moda Brasil: Fragmentos de um vestir tropical” ao lado de Carol Garcia, Káthia Castilho afirma que “a bipolarização da peça de roupa é errônea”.
— A análise que eu proponho dos corpos feminino e masculino não tem essa codificação do que é para o homem ou para a mulher. Isso foi uma tendência imposta ao longo da História, que se construiu e está se desconstruindo. O que acontece hoje é a flexibilização desses valores de que a roupa teria gênero e de que estaria ligada à sexualidade — observa Káthia. Autora da tese de doutorado “Mulheres de saia na publicidade: Regimes de interação e de sentido na construção e valoração de papéis sociais femininos”, defendida na PUC-SP, Adriana Baggio analisa que a saia é, muitas vezes, objeto de protesto.
— Tanto no universo feminino quanto no masculino, a saia é usada em forma de ato político. A mulher usa minissaia na Marcha das Vadias para reivindicar que o tamanho da peça não é motivo para que seja agredida na rua. O homem de saia também é alvo de ataques e da associação direta ao homossexualismo. O fato de ser gay ou hétero não interfere na escolha do uso do traje — acredita Adriana. A primeira saia é tipo “senta, que lá vem história”. O caso do funcionário público e ilustrador André Amaral Silva, interpelado pelo segurança de um prédio comercial no Centro porque foi de saia trabalhar, virou folclore.
— Era 4 de fevereiro de 2014, até então o dia mais quente daquele verão. Há quatro anos, eu participava de reuniões reclamando que o ar-condicionado do edifício estava quebrado. Teve um dia que avisei para a equipe que viria trabalhar de saia. Muita gente riu. Outros duvidaram. Um ano depois, o governador decretou o uso de bermuda — lembra André, que até hoje não se conforma com a demissão dos porteiros que liberaram sua entrada. Lenda urbana na cidade de São Paulo, o arquiteto, engenheiro, artista representante do movimento modernista e cenógrafo Flávio de Carvalho, em 1956, caminhou pelas ruas da cidade de saia, meia-calça arrastão e blusa bufante. A performance ficou conhecida como “Experiência Nº 3” e o modelito foi batizado de “new look tropical”.
— Sobre o new look do Flávio de Carvalho, mais que uma saia, representava a invenção de novas formas de vestir adaptadas aos trópicos. Inventar um novo vestir para inventar novas subjetividades e uma nova sociedade nos trópicos. Era um pré-parangolé — analisa o crítico de arte Luiz Camillo Osorio. A performance completou 60 anos em 2016, e o tema permanece atual. Também no ano passado, Oscar Halac, reitor do Colégio Pedro II, em Botafogo, decretou a não distinção dos uniformes feminino e masculino.
— A grande questão não é liberação do uso de saias para meninos. É o fim da distinção de gêneros dos uniformes. O entendimento de que isso faz parte de uma construção histórica e a naturalização deste tema em sala de aula são muito pertinentes — diz o vereador Tarcísio Motta, professor de História da escola até o final do ano passado. Filipe Techera, de 33 anos, consultor de comportamento da Perestroika, uma escola de atividades criativas, não esquece o dia em que entrou numa loja feminina disposto a sair de lá de saia.
— Fui à Farm para sentir como as vendedoras reagiam. Fiquei surpreso com a que me atendeu. A única coisa que me perguntou foi se era para presente. Disse que não, e ela trouxe milhões de modelos para eu experimentar — recapitula Filipe, que comprou uma preta. A peça circula por aí. Rivalzinho, Circo Voador e Praça Tiradentes são lugares manjados para esbarrar com adeptos. No armário de Filipe, depois da pretinha, também vieram uma estampada que uma amiga trouxe da Ásia e outra básica, rodada, do estilista Guto Carvalhoneto. — Há quatro meses, dei uma palestra de saia e camiseta branca e, modéstia à parte, eu estava chiquérrimo.
De um jeito despretensioso, o artista e produtor cultural Fabio de Souza, de 39, encontrou seu primeiro modelo numa viagem a São Paulo. — Estava na loja de departamento Riachuelo fazendo uma produção de moda, passei pela seção feminina, que acho desnecessário ser separada, e vi uma preta lisa. Nunca tive problema de achar que usar saia seria uma questão. Resolvi provar — lembra Fabio. — Percebi que tinha uma gama de possibilidades de combinar com outras roupas do meu armário. Além da praticidade, é elegante.
A saia abriu sua cabeça: — Uso saia e vestido e pinto a unha. Porque eu gosto. Acho bacana. Personalidade de redes sociais como o Instagram, José Gomes Júnior, de 29, incorporou o personagem do perfil Josedesaia na vida real. — Participei da produção de uma série em que tive contato com o mundo do transformismo. Num intervalo de gravação, fui para a casa de uma amiga e brinquei de me montar. Criei o perfil para postar as imagens — conta José, que trabalha com cinema.
No começo, ficava inibido de sair na rua todo papagaiado. Tanto que clicava as fotos em casa. — Me via fantasiado e tinha medo de ser hostilizado. Com o tempo, minha relação com o personagem mudou. Gosto muito de roupa de mulher. Sempre achei a moda masculina mais sem graça. Não que eu saia de casa vestido assim todos os dias, mas me sinto mais livre para transitar entre as duas seções — diz José.
Bailarino que estampa o ensaio fotográfico da capa, Bruno Cezario, de 37, é discreto ao vestir saia. Usa peças de Lisa Corti, Beira e Richard’s, mas não sai na rua nestes trajes. — Na minha casa, recebo as pessoas como gosto de estar. De vestido, camisolão e meia brilhosa — conta. — A partir do momento em que você está na rua, você vive um personagem. E, neste cenário político que estamos vivendo, as pessoas estão muito agressivas. Por isso, e talvez porque tenha um lugar no palco, sinto a necessidade de me preservar, de ser invisível.
Veterano no uso de saias, o cantor e compositor Paulo Ho, de 37, embarcou na tendência há décadas. Foi no Mercado Mundo Mix, evento de moda, arte e gastronomia, que se apaixonou por uma kilt. Tempos depois, segue adepto do estilo. Inclusive, vai lançar o clipe “Sempre fui mulher de alguém” com homens de saia no casting. — Saia é uma peça que vai e vem. Eu tinha 18 anos quando comprei uma quadriculada. Comecei a usar em festinha. Tinha gente que amava e gente que torcia o nariz. Vinte anos depois, continua a mesma coisa — avalia Paulo.
Idealizador e curador do Grito Bazar, queridinho dos meninos que vestem saias, Thiago Neves encara com naturalidade o apreço pela peça: — É só mais uma muda de roupa. Para mim, é a mesma lógica entre usar calça ou short. Não penso muito sobre gênero. A moda tem tantas releituras, a gente revisita tanto os anos 1980 e 1990. Se a gente puder ser mais criativo, melhor.
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Redação iBahia
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