"Quando via assistia às notícias, simplesmente não acreditava. Preferi ver por conta própria. E, enfim, encontrei uma situação diversa." Andrew Drury não sabe exatamente por qual motivo decidiu abandonar o conforto do lar e a família para, algumas vezes ao ano, viajar sozinho a lugares como Síria, Afeganistão, Iraque, Somália e República Democrática do Congo.
Países com diferentes culturas, riquezas e sofrimentos, mas com uma cena em comum: conflitos armados que devastam seus territórios, deixam milhares de mortos e que afastariam quaisquer "turistas normais". Mas o inglês de Surrey é um dos (não tão) raros turistas em lugares em guerra — um tipo de viajante que atrai empresas especializadas em facilitar a entrada em locais que a violência tornou inóspitos.
"Estas viagens nos mostram quem somos, o que é ser humano. Vemos a intolerância e a tolerância andarem juntas", conta por telefone ao GLOBO, enquanto organiza uma volta em outubro à sua cidade preferida, a capital somali, Mogadíscio. "Vemos nestas situações gente maravilhosa, apesar de seus pesares.
"Turista de guerra" há mais de 20 anos, Andrew é um dos viajantes que desconsideram avisos de órgãos como o Departamento de Estado dos EUA, que desaconselham visitas a uma série de países africanos e do Oriente Médio pelos confrontos armados e o terrorismo. Ele gosta de relembrar quando foi acolhido por tribos curdas e yazidis no Norte do Iraque e teve de se abaixar para não ser atingido pela artilharia do Estado Islâmico.
"Gosto de ver as pessoas tentando viver normalmente, apesar de tudo que acontece ao seu redor", conta ele, que a cada poucos meses tira folga da empresa de construção que fundou e deixa a mulher e os dois filhos para explorar o perigo.
O Itamaraty também tem a sua lista. Em 11 países, a situação é tão grave que a recomendação do governo brasileiro é que se evite toda e qualquer viagem, como a Afeganistão, República Democrática do Congo e Síria. Para outros, como Burundi e Suazilândia, a orientação é evitar viagens não essenciais. Há ainda a recomendação de viajar com alto grau de cautela para oito países, como Lesoto e Ucrânia, e grau moderado para quatro, como Trinidad e Tobago.
'Descobrir as sociedades sem filtro'
Os aventureiros de conflito são uma minoria na indústria do turismo. Mas com uma rápida pesquisa na internet, logo se pode encontrar companhias especializadas em viagens para lugares como as montanhas do Afeganistão em zonas próximas ao Talibã, as áreas disputadas da Cachemira no Paquistão ou os países afetados pelas guerras civis na África.
Uma destas empresas é a Untamed Borders, que, no entanto, se recusa a levar seus pequenos grupos de clientes para áreas em confronto. Seu fundador, o britânico James Willcox, criou a agência com amigos afegãos e paquistaneses para atender a demandas de jornalistas, pesquisadores e curiosos pela região.
"Nossa motivação é garantir que quem visita e quem hospeda se beneficiem. Fazemos um negócio economicamente viável, sem explorar a destruição. Frequentemente temos que lidar com a burocracia, e há “taxas de facilitação”, mas felizmente não se vê muita corrupção", revela ele, que anualmente guia clientes a locais como as montanhas de Bamyian, onde o Talibã em 2001 destruiu estátuas de Buda protegidas pela Unesco.
Área de tensão latente, a Zona Desmilitarizada (DMZ) entre as duas Coreias recebe passeios a túneis cavados pelo Norte para se infiltrar no Sul, memoriais da paz e pontos onde o conflito pode eclodir. E, desde abril, Seul vem discutindo como intensificar o turismo ali.
"Se desenvolvermos a DMZ como um local turístico mundial, isto ajudaria a deter a agressão do Norte e contribuir para a economia nacional e a reunificação da península", disse em abril Jung Chang-soo, presidente da organização estatal sul-coreana de turismo.
Um pouco mais ao ocidente, o documentário 'War Matador', da israelense Macabit Abramson, mostra pessoas que decidiram ver de perto a incursão a Gaza em 2009. O tom das reações varia de "vim para ver como bombardeamos os árabes" a "quis entender como se sofre e se vive ao mesmo tempo". Hoje, companhias israelenses e estrangeiras oferecem passeios aos territórios ocupados da Cisjordânia ou ao alto das Colinas de Golã, para ver um pedaço da Síria e seus confrontos.
"Nossos clientes são pessoas informadas que entendem as questões atuais. Em vez de ver uma reportagem no jornal, querem entender por conta própria", conta Nicholas Wood, fundador da Political Tours e ex-correspondente do “New York Times” nos Bálcãs. "Damos acesso e compreensão de histórias-chave globais".
Sua empresa leva curiosos para áreas destruídas em Kosovo, Bósnia, Armênia e Geórgia, mas também outros destinos de importância geopolítica, como Cuba e Irã.
Referência no estudo do "turismo sombrio", o professor Philip Stone, da Universidade de Central Lancashire, acredita que este "fascínio mórbido é na verdade uma busca por compreensão sobre a vida e a conexão com o mundo, política e herança". Outros turistas pensam igual.
"Os destinos que saem do tradicional são muito mais enriquecedores. Descobre-se neles, sem filtro, as sociedades e culturas. Talvez seja perigoso, mas os riscos são controláveis e a recompensa é tanta que vale a pena", assegurou à AFP o ex-executivo de investimentos americano John Milton, logo após voltar de sua ida anual ao interior do Afeganistão.
Já Andrew planeja agora ir de barco ao Iêmen, que vive uma guerra civil, e voltar ao Iraque, para se "certificar de como estão as pessoas" com quem esteve no front. "Não recomendaria aos outros o que faço. É muito arriscado. Mas desde que comecei estas viagens, me tornei muito mais tolerante e compreensivo. Meu maior medo é ficar com muito medo de fazê-lo".
*Colaborou André de Souza, de Brasília
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Redação iBahia
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